domingo, 23 de outubro de 2016

Coisas Pequenas

Estou de pé num comboio apinhado. À tona, um mar de cabeças. Rostos embaciados por cansaços  de fim de dia, a aziaga fixidez metálica a reluzir em olhos de adaga. E os pés contrafeitos num retalho de chão, a enviesar por entre bagagens que murmuram inércias solitárias, asas de sacos suplicantes, levantem-me. Um carrinho de bebé dorme arrumado contra a cinta de metal esquinado da carruagem e recalcitra a cada travagem da máquina,  estremunhado de sono, incapaz de situar-se, que cama estranha,  não me aguento, vou cair. Solidária com aflições de objectos, lanço-lhe a mão, encosto-o de novo e ele agradece a retomar sonhos, virado à penumbra,  voz pastosa, ...ado. Desço as pálpebras a procurar num regaço a criança que o habita. E vejo aquela mãozinha papuda de cérelac e papa de babana-laranja. Está sozinha sobre o pescoço da mãe. Não é um abandono contente. Não. É a lentidão de um contacto amoroso e confiante. Adere quase parada à suavidade quente da pele maternal, dedinhos minúsculos a entreabrir de prazer inconsciente. Percorro-lhe o bracito vestido de refêgos e paro nas bochechinhas em flor. Lá fora, na tarde que esmorece  a todo o vapor, árvores e casas  fogem da vista como o diabo da cruz. Mas dentro deste ovo de gente, o cetim da pele apetece-nos a ternura que só a mãe satisfaz em beijos repetidos.  
Tão bonitos  assim ensimesmados um no outro. Quem sabe se o inexplicável do assalto de saudade sem assunto nasce de momentos como este, vivências de pura alegria e bem estar fechadas à consciência. Os dois são quadro que  resplandece na palidez incrustada das lâmpadas acesas.
Depois a mãe ajeita ao ombro a maleta, levanta o bebé nas pernitas arcadas, toca-lhe aqui e ali num arranjo de roupas, puxa-lhe as meias, a boca escorrendo ternuras e murmúrios para o sorriso aberto dele. Atrás de mim, o apetrecho espevita de utilidade insistente. Quando passa, estendo-lho por entre os guinchos  do comboio. De pé,  ela agradece maquinal, pressurosa com a carga, imbuída na formidável fortuna que lhe coube e leva rente ao coração, num tu a tu com o externo, a alegria dos pézitos a roçar-lhe as flutuantes.

E no fim da viagem estás tu. Um céu nublado a flutuar na paisagem sôfrega de apressadas gentes. Os ombros penduram a fundura do teu desgosto sem expressão. Damo-nos o braço e saímos. 

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