Estou
de pé num comboio apinhado. À tona, um mar de cabeças. Rostos embaciados por cansaços de fim de dia, a aziaga fixidez metálica a reluzir em olhos de adaga. E os pés contrafeitos num retalho de chão, a
enviesar por entre bagagens que murmuram inércias solitárias, asas de sacos
suplicantes, levantem-me. Um carrinho de bebé dorme arrumado contra a cinta de metal esquinado da carruagem e recalcitra a cada travagem da máquina, estremunhado de sono, incapaz de situar-se,
que cama estranha, não me aguento, vou
cair. Solidária com aflições de objectos, lanço-lhe a mão, encosto-o de novo e
ele agradece a retomar sonhos, virado à penumbra, voz pastosa, ...ado. Desço as pálpebras a
procurar num regaço a criança que o habita. E vejo aquela mãozinha papuda de
cérelac e papa de babana-laranja. Está sozinha sobre o pescoço da mãe. Não é um
abandono contente. Não. É a lentidão de um contacto amoroso e confiante. Adere
quase parada à suavidade quente da pele maternal, dedinhos minúsculos a entreabrir
de prazer inconsciente. Percorro-lhe o bracito vestido de refêgos e paro nas
bochechinhas em flor. Lá fora, na tarde que esmorece a todo o vapor, árvores
e casas fogem da vista como o diabo da cruz. Mas dentro deste ovo de gente, o
cetim da pele apetece-nos a ternura que só a mãe satisfaz em beijos repetidos.
Tão
bonitos assim ensimesmados um no outro.
Quem sabe se o inexplicável do assalto de saudade sem assunto nasce de momentos como este, vivências de pura alegria e bem estar fechadas à consciência. Os dois são quadro que resplandece na palidez incrustada
das lâmpadas acesas.
Depois
a mãe ajeita ao ombro a maleta, levanta o bebé nas pernitas arcadas, toca-lhe
aqui e ali num arranjo de roupas, puxa-lhe as meias, a boca escorrendo ternuras
e murmúrios para o sorriso aberto dele. Atrás de mim, o apetrecho espevita de
utilidade insistente. Quando passa, estendo-lho por entre os guinchos do comboio. De pé, ela agradece maquinal, pressurosa com a carga,
imbuída na formidável fortuna que lhe coube e leva rente ao coração, num tu a
tu com o externo, a alegria dos pézitos a roçar-lhe as flutuantes.
E
no fim da viagem estás tu. Um céu nublado a flutuar na paisagem sôfrega de apressadas
gentes. Os ombros penduram a fundura do teu desgosto sem expressão. Damo-nos
o braço e saímos.
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