Os
acasos integram a curiosidade da vida, uns calham bem, parecem feitos para nós,
encostam nos nossos desejos e anseios; e é uma alegria tê-los assim do nosso
lado. Outros, são pura perversão. Contrariam. Recusam. Assustam. Ultimamente,
sou refém dos últimos. É claro que não é o destino, eu acredito lá nessas
coisas. Ná. Destino é que não é. São acasos em cima de acasos. Todos, por
acaso, virados contra mim (alguns sou eu que, masoquista, os viro, que a eles
tanto se lhes dá). Entre trabalhos, preocupação e doença de canseira em
contrapeso, sobraram-me uns dias em que encarreirei para a água salgada como
prisioneiro liberto: possuída de inusitada alegria, a rever família chegada; a
minha praia é mesmo assim, um enleio materno e de aconchego.
Julgava
que, enfim, chegado o outono, teria um certo descanso – já todos tinham
regressado ao trabalho -. Pensava, em antecipação prazeirosa, nas manhãs e
tardes em que me rodeio de conforto e escrevo, leio e me ocupo de atividades
agradáveis. Antevia o casulo dizendo para mim, chega, agora é a minha vez, vou
comprar isto e aquilo que me podem ajudar. Mas é que não era a minha vez. Era
ainda a vez da doença, do trabalho, da preocupação. No meio do reboliço, comecei
a ficar baralhada e já não sabia se era ainda um resto da primeira vez com
reforço, se uma segunda vez, mas mais potente. Também não foi preciso
preocupar-me. Porque, de rompante – interrompeu-me o jantar, a mal educada -, a dor entrou e varreu-se-me tudo. Excepto ela.
De uma penada, as preocupações foram ao ar. E não há dúvida, é rainha. Senta-se
dentro de nós num trono que traz debaixo do bracinho e por ali fica a fazer-se
notada, ó pra mim toda em lantejoulas. Como se pudéssemos não a notar depois de
nos tomar corpo e arredores (os arredores são figura de estilo, ela cultiva a
exclusividade, só nos quer a nós). E não
há nada, mas nada mesmo, que nos desvincule da sua presença abrasiva. Esticas
um braço e dói, apanhas um papel e custa, pegas num prato e esforças. E
portanto. Tenho andado assim acompanhada a fazer a minha vida. Oh, é claro, a
medicação de que ela ri sobranceira. Descobri
ontem, ao fim de dez dias de lhe sofrer acerado despotismo, que, com calor e águas
quentes, devém, digamos, uma sinfonia
lamentosa. Aguentável. Mas eu tão contente de me encontrar parecida comigo!...
Para
celebrar o corpo semelhante ao que já foi, fiz um bolo e fui comê-lo em
companhia de gente que sabe o que isto é há mais anos que eu (tem que se ver, é
a única gente disponível). Foi das
coisas mais saborosas que já fiz (não o bolo, o estar a lanchar em companhia).
Contentei-me de me baixar, de pendurar roupa no estendal, de varrer, de estar
sentada a ouvir conversa de três velhotas gulosas e de pouco nexo. Ao que a
gente chega! Não era saudade da rotina. A rotina exige-me sempre e em todos os
casos. E estou quase, quase, em crer que me exige morta ou viva. O único
problema é que não sei se morta consigo fazê-la. Mas isso penso depois, que por
enquanto estou viva. Posto isto, deitei-me contente da recuperação de mim, a
dor já apeada do trono desdobrável e a tirar a coroa. A pensar: amanhã ainda
estou mais parecida comigo.
É
que não há direito. Aproveitou-se de mim durante o sono. Mesmo. E no cedo da
madrugada voltou a sentar-se toda direitinha e coroada, ceptro na mão. Quando
ela se senta, mal vai a volta. Na quarta comemoramos, de novo, a
implantação da república. E, palavra, nunca a república me deu tanto
transtorno: a piscina fecha. O meu médico que só consulta às quartas, está
ausente. Ora bolas.
De
modos que neste momento pondero emigrar para um país quente nos meses de
invernia; meter-me numa banheira a escaldar e ficar imersa em fumarada até
encarquilhar que nem um pero podre (já sou pero podre); fazer uma salmoura de
água quente, mergulhar as vértebras e sair tesa que nem um carapau. Mas, enquanto
assim projecto, hélas! chega-me um sms tão triste! E vou acalentar quem
precisa. Levo a dor e a coroa e o ceptro e o que calhar. Que não desagarra, a
estúpida. Bom, não posso negar: faz companhia.
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