sexta-feira, 7 de junho de 2013

Atordoar

Escrever cartas é mister que falsamente nos aproxima de alguém desconhecido. Foi assim que aconteceu connosco. Sabíamo-nos das palavras. Eu, de horas a dicionário e discurso de mau francês, que sempre fui de me distrair a escrever – palavrosa e ficando a pensar no que rodeia a escrita, no que não se diz por não vir a propósito, mas se pensa na mesma, no que se gostaria de contar mas sai mal ou não sai, coisas assim que me tomam ainda hoje em correio escrito, vulgo mails. Quando nos encontrámos frente a frente, todo esse tempo de epístola se fez inútil, retraídas de um primeiro encontro e tão sem palavras como duas completíssimas estranhas. Bernardette era uma tímida taciturna, a vozita a desaparecer na exuberância do corpo, peço desculpa. E não foi a língua o que nos separou, fui eu que não consegui entendê-la no seu ser diverso. Tinha-a como certeza dentro do meu pequeno círculo. Mas ninguém nos é certo, o meu círculo não era o mundo e as pessoas não são iguais ao que delas pensamos. A minha experiência de garotas palradoras fez-me supor que a norma fosse falar pelos cotovelos.  Conhecia uma que falava pouco, anomalia que prontamente atribuí  ao facto de não conseguir cantar; e logo a julguei exemplar único. As mãos da irmã directora a imobilizarem sobre as teclas, em amplidão de desconcerto, “filha, quem desafina canta, e não te sai uma nota”. A miúda a desfiar as canções num tom neutro e sempre igual. A irmã directora toda manobras de investigação, vamos à escala, e ela átona, a enunciar as notas com a indiferença de quem está farto de contar até dez. Hoje julgo que se mascarou de indiferente para aguentar o exame a que a turma assistiu; e que fui perversa tanta vez, canta lá “Minhas botas velhas cardadas”, para verificar sempre a mesma invariância. Porém, na altura, à vista do fenómeno, atonitei – o que é frequente, não me passa – é que não me ocorrera que houvesse alguém que fosse incapaz de cantar, que nem uma nota entoasse. No tal mundo em que vivia, toda a gente cantarolava, os tios os primos, a mãe… Selectivo, o meu pai só cantava na taberna. O balcão corrido, o cheiro a vinho barato no meio da vozearia e os copos de cinco e de dez davam-lhe uma alegria nunca vista; ainda eu vinha lá em cima à curva e já o ouvia cá em baixo, “ó Rita arredonda a saia…”. Portanto, não me tinha armado para fazer ricochete numa timidez silenciosa. Mas foi o que aconteceu.
No passeio pela aldeia, a escola primária, o adro da igreja, a estação dos comboios, eram irrisórios aos olhos viajantes. A rematar, conduzi-os por vereda estreita até à fonte, lugar ermo e sem outra luz que a do luar. Era o sítio preferido de todas as crianças da aldeia. Porém, os franceses não eram crianças e nem tinham a fonte na memória. Ali, nada os ligava a nada. Na bica, escorria um fio delgado que embalava a calma da cisterna com a sua cantiga e se perdia na terra empapada. Os franceses, vítimas da ingenuidade alentejana, tinham percorrido vários quilómetros a pé, estavam cansados e desiludidos (só hoje me apercebo). Mas cumpri: a lua já ia alta quando regressámos a casa.
Entrei a espreitar a sala. Estava pronta para a refeição. A minha mãe devia ter requisitado as cadeiras todas do monte e imaginei os vizinhos a jantar sentadinhos nos moxos, o queixo num desabafo, a aflorar o tampo da mesa, hoje pertenço a um anão.

Enquanto as visitas assentavam ideias e descansavam um nadinha, fui à cozinha. Uma miscelânea convidativa pairava no ar. Estava tudo diferente. Depois de várias corridas à loja a compôr faltas e acrescentos, de aturarem o mau humor do merceeiro, mas vocês hoje tiraram a noite para me moer a cabeça? A loja já fechou. Depois de tudo isso, que foram muitas vezes, os meus irmãos e primos tinham tomado banho e sido postos na rua sem ordem de entrada. A cozinha estava em polvorosa e a minha tia era um ser divino que se movia nela como peixe no aquário, absolutamente à vontade. Acudia a todo o lugar: as quatro bocas do fogão estavam ligadas e de todos os tachos se escapavam aromas apelativos. De vez em quando, os garotos entreabriam a porta da cozinha e quatro rostitos alegres e esperançosos assomavam a cheirar o ar de olhos semicerrados e sorriso desvanecido. Mas logo a minha tia dizia uma graça e fechava a porta com firmeza. Junto ao fogão, a minha mãe mexia calmamente um tacho de que se desprendia o odor de açúcar em ponto de caramelo. A minha tia girava entre a mesa e o fogão com uma segurança assombrosa e garantia-me que estava tudo bem. Ao ver-me disse, senta lá os franceses que agora é que eles vão ver como se come no Alentejo. Os de Braga  não sabem como é. 

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