quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Os Anjos também morrem

Era Primavera talvez. Pelo ângulo de luz clara sobre os mapas ao fundo da sala, devia ser Primavera. Só nessa estação a professora, António Manuel, fecha a janela do fundo que o sol dá cabo dos mapas. E eles a imaginarem os mapas a desbotar os círculos concêntricos que assinalavam as capitais de distrito; quem sabe se uns dias ao sol davam conta das cidades a sério, as adoeciam; acontece com as pessoas que se enchem de dores de cabeça, espirros e febres. E pensavam isto enquanto o António Manuel, que era o Toino de toda a gente, se levantava prestimoso de orgulho a fechar a janela para o mapa não coalhar em doença citadina ou maleita de rios que não corressem; ou, quem sabe, estradas desaparecidas, os automobilistas num desconcerto, ontem inda aqui estava, e agora vou por onde?
 Seriam as nove e poucos minutos e todos empenhados em começar o dia. Os garotos, olhos enviesados ao quadro onde a professora, braço esticado, a saia e a bata a subirem um nadinha do lado do braço, escrevia a data em letras redondas e irmãs. Os mais faladores aproveitavam a aberta e conversavam em surdina enquanto mãos abstractas de cegueira rotinada puxavam das malas cadernos, livros, lápis ainda estremunhados; outros aplicavam-se na cópia da data, a caprichar nas pernas arqueadas das maiúsculas como se monges copistas ou mestres em caligrafia. Depois, a professora virou-se no estrado, pestanejou no flash de sol, sacudiu o giz da polpa rosada e macia dos dedos e uma poalha volátil e suspensa bailou no trapézio iluminado pela janela. Tão jovem! A luz avivava-lhe o mate da pele, desenhava o oval do rosto, bordejava o arco das sobrancelhas, notação de temperamento genioso. Um sombreado de folhas da mimoseira brincava-lhe, agora ao sol agora à sombra, no nariz arrebitado e opinativo de menina sem malícia a acetinar inocências matinais nos olhos ainda sem densidade. Tão bonita a professora das nove horas pontuais! Uma pequena deusa no seu etéreo. Ainda não carregada de erros e tabuadas, de hectares e ares, de e vai um - que não se compreendia minimamente para onde iam tantos números - e de noves fora nada, e de tantos eteceteras que a enfureciam rente ao final do horário, quando os olhos inquietos no minúsculo do relógio de pulso, um espelhinho redondo e impaciente retirado da mala com um estalido, testemunha da pressa em ser namorada. 
Deu um passo, desprendeu-se da luz e avisou com a idade que tinha e mais dez anos, vou fazer a chamada, não quero barulho. Mas, antes de chegar à secretária, a porta abriu de rompante e o Garcia no tapete, afogueado, mala na mão, as palavras a sobrar, grandes demais para o tamanho da escola, a caírem a trouxe-mouxe umas sobre as outras, minha senhora, morreu o irmão da Elisa. As crianças levantaram a cabeça e olharam o inadvertido lugar vazio da miúda. Que se ela ali, o Garcia a inventar, o irmãozinho em casa, atento a uma tampa, um gato, qualquer coisa. A professora coagulada, nariz no ar. O Garcia a emendar, atrapalhado do seu incorrecto, Minha senhora, dá licença? E ela, em vez de, sim, interrogou a parecer que chegava de qualquer lado, quantos anos tinha ele? E o Garcia, de rajada, importante, tinha três, morava mesmo ao pé de mim, morreu esta noite. - e com entoação de ponto final parágrafo -  Ela não pode vir à escola. A mestra a brincar de estátua, num movimento só de lábios, entra e senta-te. Ele a recordar os hábitos de ser aluno, Bom dia, minha senhora. A professora sem resposta - os professores podiam não responder -, decidida, já a caminho da porta pela fila da direita, façam a data, o nome e os abecedários; o grande e o pequeno. Vou falar com a D. Vitória. Não quero barulho ouviram. E a porta batida em exclamação, ui, aleijei a ranhura do trinco. Mas os passos da professora a afastarem-se em ritmo juvenil, quero lá saber da porta; queixinhas de trinco não me apoquentam. A sala uniu num silêncio de espanto. Era o momento do Garcia, a sua ocasião de recorte e destaque. Então, olhos redondos de insólito, que não tinha dormido, ouvia-se tudo na casa dele. E toda a atenção concentrada no rosto do Garcia, a ansiar-lhe a voz, os olhos em crescendo sobre a novidade, é um caixão todo branquinho e ele já tá lá dentro; hoje de manhã fui lá espreitar, por isso é que me atrasei.
Nenhum conhecia caixões ou morte, que as mães não os deixavam ir a lugares onde mortos pontificassem. Se alguém partia para o outro mundo, elas despiam a bata ou desatavam o avental, vestiam uma blusa lavada, tiravam cores e, maquinais, alisavam cabelos desavindos. Depois, embrulhavam-se em xailes escuros com cheiro a fumo e partiam sozinhas, a acompanhar. Que homens eram como crianças, não se avinham com mortos. Ali ou em tanto Portugal, a vida e a morte estavam à conta das mulheres. Os homens tinham de seu as tabernas, o trabalho e alguns mandavam nas suas mulheres tristes e desancavam-nas e aos filhos quando o mundo se negava (ou os negava a eles). E não se lhes sabia mais influência. 
Nas mulheres, operava-se a metamorfose. Saiam de suas casas sendo ainda as mulheres de fulano de tal, mães de cicrano e beltrano, senhoras do seu nome de baptismo. Porém, no caminho para o morto, não se sabe por que vertigem da tristeza, vestiam a alma de pena profunda e chegavam lacrimosas e doloridas, a lamentar todos os males. Abraçavam os vivos enlutados e sentavam-se lado a lado, em comunhão lúgubre. Compungidas. Funéreas. Podiam ter vinte ou trinta anos, todas pareciam cinquenta. Durante a primeira hora, faziam gasto da tristeza acumulada, rezavam por alma do defunto e empreendiam no pouco que vale um homem. Depois a vida vencia-as e surdinavam conversas por entre suspiros espaçosos. As mais afoitas lavavam o morto enquanto estava quente e enfeitavam-no para a função; traziam braseiros de inverno dentro de latas, onde queimavam alecrins discretos e punham-nos na sala com a devida distância do defunto; faziam café de cevada em chocolateiras de barro a que chamavam esquelateiras e distribuíam-no aos presentes; num olhar acabidavam a miséria, escondiam em trouxa roupas sujas  que depois levavam para lavar e, com alma de desembaraço, tratavam de orientar as crianças de casa pedindo umas às outras meias pretas, fumos de braço e laços de igual cor que as crianças, coitadinhas, não são para  lutos carregados. Mestres de cerimónia improvisados. A madrugada encontrava-as hirtas no posto, a repuxar o xaile ao peito, olhos pisados, cansadas da posição depois de um dia de trabalho. Imerso no dia a aclarar,o pensamento adiantava-se às horas e gritava deveres,  o gado, o cesto do almoço ainda por aviar, os gaiatos a ir para a escola “; e Deus queira que tenham feito as coisas de casa que a professora é nova, mas não é para graças e bate de ponta a ponta se bem lhe apetece”. Então, abraçavam de novo os do luto e saiam de xaile apressado, certas de serem elas, expurgadas da tristeza que deixavam enovelada na sala do velório, agarrada a cadeiras e bancos de madeira e mau sentar. Chegadas a casa, acordavam os seus homens, davam comer à criação, aviavam e deixavam almoços, mandavam os filhos à escola e iam para o trabalho.

Mas tudo isto as crianças ignoravam. Conheciam um certo ríspido no tom de voz maternal, garante de um dia sem corda para esticar. Ou um afago mais prolongado no cabelo, uma paciência triste no fazer da trança. Porque o cansaço de existir não é em todos igual. A sobrecarga do dia aguçava os ímpetos a umas e impregnava de ternura diluída em tristeza os gestos de outras. Nesses dias de coração turvo, os olhos das mães devinham pântanos e não eram navegáveis. 


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