quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O Jantar

A malha com que a vida se tece não a sabemos. Estamos nela e tanta vez somos absortos nos nossos pequenos ses, habituados ao chão que pisamos, omissos do cansaço de quem o alisou e nos deu um caminho. E hoje que penso nisso, agora, neste momento, sei que pisava sobre mil dedos estendidos por mim. E quanto ignorei! Não vi os meus irmãos e primo esfomeados e mortos de cansaço de tanta ida à mercearia e a esperar que sobrasse jantar; não vi as minhas vizinhas a ajudarem com tachos e pratos e cadeiras e toalhas e sei lá que mais; não vi que a minha tia servia o ano inteiro os seus senhores importantes e vinha para matar a saudade e descansar. Fechei os olhos a não termos electricidade na aldeia e os franceses serem citadinos. Desliguei a ficha peremptória da doença que exigia a minha mãe, vamos embora, despede-te! E, felizmente, não me envergonhei da nossa condição de portugueses de fim de tabela.
 Contente e mesmo vaidosa da minha amiga francesa, não reparei em cadeiras desirmanadas e estranhas, pousadas a desábito, retraídas, a madeira a concentrar-se toda num afilar de traves que latejava, ai que aperto, falta-me a respiração; não notei o pasmo de pratos e talheres que não conjugavam, lado a lado mas desconhecidos, mediados pelo  artístico dos guardanapos de pano, os pratos a competirem nos desenhos, o meu é mais bonito, não, não, as flores são sempre mais bonitas e eu tenho um raminho fino no fundo. Não vi a admiração da cal a exclamar, o relógio de parede abismado, o olho pendular a crescer e perder cadência atrasando o invariável dos ponteiros, nunca vi tanta gente junta, falta-me coragem para bater as meias horas.  
Ao invés, apreciei a brancura de uma toalha desconhecida, dedos passeantes a agradecerem o algodão; desvaneci no enrameado cetinoso dos guardanapos que palpei a disfarçar a polpa do indicador na nervura da bainha, a memória avivando a vergonha da minha mãe quando na reunião das senhoras finas da igreja reagi à brancura do guardanapo exigindo em voz clara, mãe a rodilha? Quero a rodilha! E recusei conspurcar aquela alma limpa; então, uma senhora tocou um sininho pequenino e quando a criada entrou, traga lá uma rodilha da cozinha. – e para o pasmo vidrado da criada, enquanto as outras, dedos parados nas chávenas, o chá a inquietar-se em ondinhas duvidosas de não presto, num meio sorriso de batom cor-de-rosa que não entendi de todo -  É para a menina se limpar. A criada só o imperceptível de um trejeito, sim, minha senhora. Saíu e trouxe  uma rodilha limpinha na bandeja – o saco de transporte interno das criadas era a bandeja; cada uma tinha a sua. Aguardavam ordens frente à patroa, muito direitas, com ela virada ao coração, facto que sempre me impressionou -, deu-ma e ajudou-me com os dedos sujos da bolacha de chocolate, dá cá a mão que eu limpo-te. 
Afastei lembranças a teimar e fiquei estúpida a mirar as flores rasteiras que marcavam o centro da mesa, num pica flores que eu mesma comprara e não sabia utilizar. Então, foi-me subindo a satisfação de tudo estar tão bem que os franceses seriam obrigados a gostar.  Eles, esfomeados; eu e o meu pai, parvamente contentes.
A primeira travessa que a minha tia pôs na mesa tinha as broschettas que fez com o pão duro torrado à lareira e o nosso azeite, ervas aromáticas e tomate da horta, a que juntou o queijo da vizinha. Para mim, foram absoluta novidade e, quando ela me serviu, perguntei-lhe como comê-las. O conselho veio certeiro, quando não souberes, deixa-os comer primeiro e depois faz igual. Ora os franceses lançavam-se a agarrar nas fatias à mão. Fizemos o mesmo. Discreta, a minha tia ia entreabrindo a porta, a investigar o momento da sopa. Penso que os franceses não deram por nada, tal a atenção às broschettas. Então, quando começaram a mastigar mais devagar e a elogiar o sabor das entradas, surgiu uma sopa fumegante que ela serviu com a presteza alegre que lhe conhecia, deixando-nos terrina e concha. Não me lembro a que me soube aquela sopa. Mas em nada se parecia às de minha mãe. Era tão melhor que os franceses, sem excepção, repetiram; e tive de ir à cozinha buscar mais. A minha tia entre o alegre e o triste, coitadinhos dos gaiatos, já não temos sopa para eles. – e num desabafo - Dar comer  a esta gente é pior que sustentar um burro a pão de ló.

A meio da sopa, os franceses todos à risota. Quando inquiri a causa, o pai da Bernardette contou-me que tinha feito uma anedota à mulher e, entretanto, ela pedira-lhe que a passasse aos filhos. E foi a gargalhada francófona. Então, decidiu, talvez por delicadeza, contar-me a anedota que tinha feito e, julgo ainda hoje, se devia a um jogo de palavras que desentendi. Mas ri. Modestamente, claro. Nem o tema conseguira captar. Entretanto, o meu pai, desobrigado da conversação, comia os entusiasmados pitéus da cunhada, a que sempre elogiava a mão. Porém, o senhor solicitou que eu lhe contasse a graça. Virei-me para ele e, pai, o senhor fez uma anedota à mulher e contou-me, mas eu não percebi nada; só que sorri na mesma e eles pensam que percebi. O meu pai, colher de sopa a meio caminho da boca, parou. Levantou a cabeça. Na nossa frente, o bloco francês aguardava. Suspenso. Talheres sem bulir. Só a surdina do relógio, tic-tac, tic-tac. Então, o meu pai voltou atrás, mergulhou a colher na sopa, tomou balanço e soltou em bomba duas enormes gargalhadas que lhe estremeceram o arrepio e de certeza atroaram no completo do monte. A francofonia alegrou reabrindo galhardos sorrisos enquanto eu chorava de riso só de me lembrar do inteiro inesperado do meu progenitor, sisudo por natureza. Findo o momento hilariante e cumprido o papel,  o meu pai imbuiu em alentejana calma e  concentrou-se no conteúdo do prato. E os autores do incógnito humor retomaram a sopa, orgulhosos da harmonia de ideias, desentendidos da sua restrição a lábios e dentes. 

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