quarta-feira, 5 de março de 2014

Dallas Buyers Club

A atribuição dos óscares levou-me a “Dallas Buyers Club” (2013), filme em stoque que aguardava um apetite que eu sabia não ia chegar. Mas os dois actores ganharam respectivamente o prémio de melhor actor principal e melhor actor secundário. E a memória que não nos larga, a chagar-me o juízo, as palavras de alguém que me quer bem e a quem tanto quero, tu perdes muitos filmes bons por causa dessa atitude; - a continuar, engatilhada em reprovação de ternura – há histórias boas, mas se começam violentamente, tu desistes. E perdes muito. Perdes sempre alguma coisa.
Mas neste filme eu sabia que não era a violência. Dallas Buyer Club é mais. Nele existe o lado da vida que me faz estremecer involuntária, me turva a vista de repugnância e torce o estômago até à agonia do vómito. Quando terminou, dei por mim na casa de banho, as mãos na bancada, uma mulher de meia-idade a observar-me do espelho, agoniada a mais não poder, terrosa de pele, o olhar num desconcerto alucinado. Olhei-a na pergunta muda, “para além da insónia no cesto de aquisições nocturnas, de que valeu vê-lo? De que me valeu assistir o que já sabia acerca da indústria farmacêutica e do HIV?" É certo, surgiram-me uns quantos nomes novos e científicos, mas duraram uma estrela cadente.
O único a merecer-me reparo foi o desempenho dos dois actores. Ainda que a história tenha um lado atractivo de verosimilhança com a realidade que em mim dá a volta, azeda e se torna repelente. Não é delicodoce senão em breves momentos – bani-los teria sido uma ideia - e traça um percurso de fim de linha sem os adereços da peninha fácil, da componente religiosa, da assumpção de uma transcendência capaz de mitigar ou iludir o cáustico do caminho. Não há bermas verdejantes nem fontes de água pura. Na verdade, não há bermas. Ali, nunca é Primavera, vive-se na dureza do asfalto.
Porém, os dois premiados. Um mais um. Já conhecia o actor principal, Matthew McConaughey um galã de perfil muito razoável em filmes só digeríveis sexta à noite, quando nós cansadíssimos, estatelados frente à TV, não muito à frente de qualquer animal doméstico; perdido um bocado da fita, nada perdemos. Comédias supostamente românticas - já ninguém sabe o que é romantismo -, lamechices desenxabidas ao lado de actrizes que nunca serão formidáveis apesar da beleza inegável. Francamente, não esperava mais dele. Mas Ron Woodroof  mudou-lhe – em mim, já me disseram que existe uma série onde a sua qualidade desabrocha -  a imagem. Note-se, não foi um acrescento. Foi antes um “A Star is born”. Certamente o realizador,  Jean-Marc Vallée, viu-o muito mais e melhor que eu. Ainda bem. Na fita, McConaughey  é um doente de HIV que, como tantos outros à época – e quem sabe ainda hoje -, não fazia ideia de que fosse transmissível por relações sexuais desprotegidas. Que, depois de lhe vaticinarem a duração – 30 dias – resolve tomar a doença a seu cargo, abandona o hospital e as suas recomendações e recorre a medicação alternativa com resultado positivo. Graças à sua vontade de viver e por recurso à vida de esquemas em que sempre esteve envolvido, cria uma espécie de associação de distribuição medicamentosa grátis e paralela – os doentes pagam apenas a joia de sócio -  chamando a sua atenção para o perigo do receituário adoptado em hospitais. Associa-se neste empreendimento ao Transsexual (Jared Leto) internado a seu lado quando lhe foi detectado o HIV e que tem por ele uma paixão muda.
Abandonado pelos amigos, uns no preconceito da doença e outros crentes – como ele mesmo, no início – de que só acontece entre homossexuais, desenvolve com o transsexual uma amizade profunda. O filme conta-nos essa tripla evolução: da doença que lhe vai ganhando o corpo; da sua luta encarniçada na distribuição da medicação mais certa e que exacerba na razão directa do dinheiro que perde e da pressão que exerce a indústria farmacêutica; dessa amizade improvável. E tudo nele é esse doente terminal, corpo frágil, as roupas a dançarem-lhe no esqueleto, o rosto a ficar ósseo e desorbitado, pele colada aos malares descarnados. Ron Woodroof passa de electricista cheio de esquemas a doente-furacão, constrói motivos de viver, para si e para todos a quem distribui vida: injectável ou em comprimidos. E o que mais me perturbou foi aquele irreconhecível McConaughey. Ou a excelência de um bom actor. Justeza de prémio!
(Continua)

Sem comentários:

Enviar um comentário