segunda-feira, 31 de março de 2014

Dia do Pai

(continuação)
É claro que, por gosto e vaidade, lhe prolonguei a atrapalhação a repetir, gosto muito de si, pai; e um simultâneo beijo na bochecha. Os olhos da vizinha a estranharem-me num fundo de rugas, de onde saiu esta alma. Abri a porta do carro. Ela, vou de abalada. E zarpou. A outra vizinha, minha distinta tia, foi-se eternizando como quem não quer nada, um olhinho a seguir-me os movimentos e depois, enquanto eu entrava e saía, ziguezagueou, bem devagar, até casa. Uma discreta pessoa.
Carreguei tudo até à cozinha e fui tentar abrir as janelas da sala. Ora, o meu progenitor tem vocação de morcego e vive semicerrado ou em escuridão alumiada por filamentos eléctricos que em regra não funcionam, posto o que o Menino Jesus, garoto simpático e assisado, lhe deu um candeeiro de pé (e lhe sou grata para todo o sempre, deixei de tricotar a tacto). Portanto, entre o cortinado e a janela, havia uma rede de teias de aranha que antecipou o resto da função. Depois, dedos de esforço na ferrugem, consegui abrir as duas janelas e logo entendi que nenhuma das visitas ia chegar tarde. Podiam reunir, atrasar o expediente, sair e ir dar um passeio: chegariam sempre antes de eu terminar.
O meu pai à claridade, no meio da sala, a medir o descalabro e a desculpar-se armado no tio Patinhas que é, podia mandar cá vir a rapariga, mas depois quando o teu irmão chegar está outra vez tudo sujo. Eu a encher um alguidar de água com detergente, ó paiiii!…O pai mora aqui, não pode limpar para o meu irmão, tem de limpar para si. Mergulhei um pano e passei pelo sofá. Olhei: preto retinto. O meu pai, convencido de que eu era mulher para o que havia a fazer, foi para a rua do monte, na maior. Impante. Suponho que, na sua idade, um filho a limpar-lhe a casa seja o máximo. Resmas de amor filial. Comecei a arrepender-me da limpeza. Mas pensei no lanche. E Portanto. Continuei. O pó da lareira e o outro tinham obra acabada. Entrou-me uma filoxera e lavei tudo, até as fotografias dos inglesinhos.
Nos evangelhos, depois de muito instado, sempre a fazer-se difícil, Cristo mudou a água em vinho. Eu, em café; sem outra instância que os meus braços e mãos e a vontade de que nos sentássemos a uma mesa limpa. Porém, um deus faz a diferença: o meu resultado cingia-se à cor e limitava-se a escorrer pelo valado da frente num rego escuro que deixava um fundo preto nos baldes e alguidares a esvaziar. Má ideia, ter esquecido as luvas de latex.
Entretanto, a minha tia terá vindo espreitar a barrela – não dei por nada – e começou a ajudar resmungando com o irmão, que…que…que. Desconversei em silêncio desapetecido. Como não parasse, ó tia, agora não vale a pena, temos é de limpar isto tudo para lancharmos. E notei que ficou contente de a incluir no grupo. Espreitei a rua. O meu radiante pai estava fazendo nada, inchado de orgulho, tonto e antiquado: inflava, a empatar conversa com o vizinho do lado, como se o que se passa em casa não importe, mas no desejo de que o outro saiba que está a passar-se. Um disfarçadão. Pus a cabeça fora da janela e, ó pai, vá lá apanhar as laranjas para o sumo, se faz favor. 
Sobre a máquina de costura de minha mãe, as nossas fotos no casamento do meu irmão. Lindas. É que não tenho memória de ser aquela pessoa. Mas, de cada vez que entro na sala, fico grata a meu pai; quem chegue e não me conheça, julga-me uma estampa. Pareço uma senhora fina. Ainda hoje não sei como me arranjei, deve ter sido o ar de Inglaterra, levei o vestido a mais dois casamentos e não consegui o mesmo aspecto. De toda a maneira, vale. Não me canso de repetir, pai nunca tire daqui estas fotos, ouviu? Pronto, é verdade que o meu irmão casou num dia de Maio soalheiro e que os ingleses iam todos em tons pastel ou primaveris. E nós três de preto. Aí valentes! Da cabeça aos pés. Parecíamos as viúvas da Nazaré. Mas em bonito. Uma espécie de corvos sorridentes e sem pio. Consigo achar-me mais extraordinária naquelas fotos que na do meu próprio casamento que ombreia com elas - eu e o meu pai estamos a sair de casa, de braço dado -; de branco vestida e bastante aceitável para quem não foi à cabeleireira, não se pintou, se esqueceu das luvas e do saiote de baixo. Agarrei uma das fotos e comentei para a minha tia, estávamos tão bonitinhas, não estávamos tia? A minha tia a olhar-se, ai, doíam-me tanto os pés! – afinando a pontaria dos olhos - até se vê aqui, tenho os pés inchados, olha lá para isto – garanto que não se nota - . A minha Natinha é que me emprestou esta mala tão bonita. Olhei a mala, uma assombrosa pega dourada em forma de coração a destacar. Coloquei a foto junto às outras e, Vou acabar de lavar o chão e ver dos talheres e dos pratos; e a tia vai descansar um bocadinho que já não tem idade para isto.
Entretanto, o meu pai pousou um balde de laranjas na cozinha e pedi ao único marido da família – o meu - que fosse buscar a minha irmã na saída do emprego. Depois, tomei embalagem na esfregona e passei da sala ao corredor e à entrada exterior.
Depois a minha irmã fez o sumo enquanto eu ultimava limpezas de pormenor. Foi um agrado olhar a mesa já pronta. Chegou a mana da reunião e lanchámos. Gostei que a minha tia e o meu pai se sentassem  à cabeceira. Comemos e rimo-nos como fazemos sempre que nos juntamos. E o meu pai, muito loquaz, falou de gente que nunca conhecemos e dos tempos em que tinha nove anos e veio sozinho trabalhar numa casa de bicicletas que pertencia a um primo.
Quando as travessas quase vazias e a ninguém apetecia mais bolo eu disse muito depressa: desculpem mas tenho que me ir deitar, encostar as costas nas almofadas, já não aguento mais. Rapidamente a sala voltou a ser ela, a cal das paredes num suspiro liberto, "ainda bem, estávamos numa ansiedade tal que ainda ficávamos verdes". E as cadeiras a gemer preguiças, "estou cansadíssima, caiu-me um peso em cima e o corpo não está habituado a esta vida". No centro da parede, o pesar do relógio repassava-nos: a pureza da memória ainda a retinir cristais e o pêndulo, qual olho cego, colado à brancura do mostrador por onde o inerte dos ponteiros nos esgarçava o passado. Despedimo-nos em harmonia, a minha tia no meio do escuro a acenar para o carro, então quando é que vens outra vez?

Fiz a viagem com a minha irmã mais nova, contámos peripécias, viemos rindo o caminho inteiro. Porém, quando aterrei na cama, amálgama de gente,  soçobrei em cima das almofadas. Em satisfeito e constipado cansaço. 

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