quinta-feira, 13 de março de 2014

Os Anjos Também Morrem III

Quando a D. Maria dos Anjos saiu, trazia um lencinho diáfano na cabeça, óculos de sol e agitava brancuras salpicadas de sangue a tilintar chaves. Tentou fechar a escola e logo o de sempre, António Manuel anda cá ajudar-me a fechar a porta. O Tóino que já estava na expectativa, queres ver, queres ver…chegou-se à professora meio sorridente, pegou na chave e puxou a porta para cima enquanto a rodava, a explicar, a porta está descaída, a senhora tem de a segurar. Depois retirou a chave e deu-lha. Ela, Obrigada. Vai para o teu lugar e toma conta dos outros lá atrás, que eu vou à frente. O Toino passando entre os colegas, já vamos embora. E eles contentes do início, a acharem-se lindos. Potentes.
            Da viagem até casa da Elisa retiveram o novo da professora lá à frente, pela berma, o seu jeito de polícia, se alguém puser um pé no alcatrão - o Tóino logo a poisar a ponta do chinelo na estrada e a metade de trás a sorrir -, volta para trás. Um general com sua tropa. E fingiam não ver a curiosidade dos automobilistas que, de onde em onde, passavam na Nacional. Era terreno conhecido e, sem olhar o caminho que sabiam de cor, aproveitavam para conversar como se não se vissem há anos ou fossem outros, unidos pelo insólito da morte de que ora dispersavam. Esquecida a escola, restavam-lhes as brincadeiras, a vida de casa, os irmãos, os pratos preferidos, os animais que tinham; e outros, de tanto assunto que as crianças sempre têm. Por vezes, a professora voltava-se e, schchchch. E, sem saber, interrompia digressões entre vacas e burros, cabras e ovelhas, mordidelas de cães e arranhões de gatos comparados ao centímetro, a medir a robustez das feridas, meias a baixar, mangas que se regaçavam numa mostra de evidência necessária, os olhos em admiração ou displicência, a minha ferida é muito maior, queres ver? Enquanto o parceiro, olhos fixados nas costas da professora, tá de costas… tá de costas…tá de costas…virou-se! Num repente, voltavam à normalidade de andar insuspeito e cadenciado que os olhos por detrás dos óculos esquadrinhavam em verde-escuro.
No cimo da subida, esperava-os a D. Vitória, gloriosa viúva, zeladora da igreja e suas jarrinhas de flores; fazia o presépio mais bonito de Portugal: comportava lagos de água numa bacia plástica com peixinhos vermelhos, tinha pontes verdejantes e campos cheios de árvores pequeninas e borreguinhos alvos deitados ou em sereno pasto, que eles mudavam de lugar sem a D. Vitória dar por isso, na ânsia de senti-los sob os dedos carinhosos. E era tudo tão bonito que o Menino Jesus eclipsava, os garotos embrenhados naquela aldeia de brincar onde os moinhos mexiam as velas, as picotas do poço picotavam, os sinos tocavam a rebate. Lá em cima, debaixo da estrela, a sagrada família ficava como deve ser: a guardar o quadro. Mas eles perdiam-se na estradinha de areia clara onde despontavam os reis magos que vinham de tão longe, coitados. Fazia-lhes espécie que não trouxessem ao Menino Jesus bolos, bolachinhas de chocolate como as da D. Vitória, e brinquedos. Pensavam para si, o que é que ele liga àqueles potezinhos com ouro, incenso e mirra que a gente nem sabe o que é e ele também não deve saber. Ninguém pode brincar com aquelas coisas e nem servem para comer. A D. Vitória sofria de Parkinson sem lhe saber o nome e a voz dela tremia no fim de todas as frases e cânticos de igreja porque a cabeça lhe estremecia em constância que os garotos imitavam sem pejo ou maldade, apenas por ser diferente de qualquer outra mulher e a gostarem de coração. A D. Vitória que não tinha filhos e, dizia-se, tinha roubado o marido à irmã. As más-línguas, foi castigo de Deus ser “maninha”. Mas a D. Vitória muito mais bonita que a irmã, um sol. Tinha o seu quê de senhora fina e interessante de conversa, figura alta e esguia, o cabelo meio curto e ondulado, sempre de saias justas compridas e irrepreensíveis, colares de pérolas sobre blusas e casaquinhos claros, foi o meu marido que mas ofereceu; trouxe-mas de Lisboa, nós vivemos lá uns anos. A D. Vitória era a única viúva que não se carregava de preto e a única pessoa na aldeia que tinha em casa bolachas de chocolate que distribuía como e a quem queria. A quem ajudava no presépio, distribuía. Tinha aqueles sapatos disformes, umas barcaças sem jeito de nada, os joanetes crescem-me dia a dia, os meninos nem sabem o que me custa andar a pé; e dava pena olhar-lhe os ossos sob o calçado, umas batatas a arredondá-lo. Eles num palpite, corte os sapatos aí de lado D. Vitória, o meu pai cortou os meus, os dedos já não cabiam lá à frente. E ela num pudor a menear a cabeça convicta, ai não, não. Não posso fazer isso – fazia-lhes uma festa na cabeça – obrigada pela ideia. E eles a pensarem que mal podia haver em deixar aquelas batatas à mostra. Porque de certeza a D. Vitória não tinha menos dores que o aperto de dedos nos sapatos se os pés lhes cresciam ao Deus dará. Mas respeitavam. Sem imitações ao andar de pata choca que distinguiam até na lonjura da subida.
Então a professora mandou parar todos, veio até meio da forma e disse, não se esqueçam que são alunos da escola e que há uma criança que morreu. E façam tudo como eu mandar, sem conversa nem risinhos. Quem não for capaz volta para trás agora, ninguém é obrigado a ir.

E os poucos metros que faltavam foram mais ou menos silenciosos, a morte de novo a infiltrar-se-lhes no pensamento. Já mais perto viram que na porta da Elisa havia um corrupio de gente em tons escuros, a contrastar nas paredes do monte, que coagulou a olhá-los, em cochichos que se pegavam à cal. Eles, formados e na rua, que ninguém os deixou entrar, porque, dizia-se entre dentes, os pais estão a despedir-se do bebé. E a lengalenga da Laura lá à frente, sapato de verniz na mão, minha senhora tenho uma borrega no calcanhar, a professora evaporada, nem sinal do seu lencinho de cabeça. E, de repente, como uma visão, um homem saiu da casa da Elisa. Tinha o rosto muito vermelho e estava esguedelhado, não se parecia com o gigante louro que todos conheciam, a cara dele transformada, cheia de vincos compridos. Vestia uma camisa preta e os ombros andavam abaixo e acima, os olhos sem ver ninguém. Parecia o Chico maluco que nunca sabia onde estava nem com quem. E um garoto lá atrás disse baixinho, cheio de pena, é o pai da Elisa. Então, qualquer coisa lhes apertou a garganta e rasou os olhos, a Laura cristalizada no choro, o sapato ainda na mão. Os ombros do pai indiferentes, num ritmo só seu, abaixo-acima, abaixo-acima, abaixo-acima. Sem lágrimas. Só um som cavo que lhes ficou para sempre. Eles pregados ao chão que nem árvores, esquecidos da mão dada, a assistir àquele desgosto fundo.

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