quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Carta a Lauren Bacall

Ora,  D. Lauren, temos de conversar. Espero que tenha escolhido uma nuvem flexível mas segura e que não vire o seu narizinho para outro lado (quer-me parecer que a senhora é de dar trabalho até ao Senhor).
            Peço imensa desculpa, não tenho grande hábito de contrariar os mortos, mas desta vez tem de ser. Sabe, se morre um cantor, uma actriz, um compositor, sente a gente algum remorso da pouca devoção e desata a procurar-lhe os sinais. Na net. E também eu. Entre a miscelânea que vi e ouvi – a senhora era uma linda indubitável e de todas as idades, muito dotada – atardou-se-me o seu amor ao trabalho, a comparação que logo emendou por incomparável, entre amizade e trabalho. Em entrevista mais ou menos recente, alguém se deitou a perguntar o que mais valorizava e respondeu que os amigos não têm preço - são o sal da vida, digo eu - mas que sem o trabalho não conseguiria viver. Não queria reformar-se e amava o desafio de fazer novas coisas e cumprir horários. Hélas, minha cara senhora, já vou avisando: vou desdizê-la como conseguir. Porque me apetece. E também porque falar com o Além é do mais fácil, não existe contraditório. Além do mais, não imagino que em vida me desse vossa mercê alguma atenção; e, creia, o inverso seria idêntico.
            Pronto, vou apresentar-me senão vira mesmo o narizito: sou uma reformada criteriosa e satisfeita com a condição. Ponto. Mas é que não acabo aqui. Nada, não; é só o princípio. A senhora desconhece, mas o trabalho na reforma devém imenso. Está certo, nunca se reformou. Que o trabalho e tal e tal. Mas olhe lá minha dona, julga a senhora que as mulheres que conheço – está bem, admito que noutros países e mesmo neste, noutras classes sociais não seja bem assim – e são reformadas, não cumprem horários e estão de perninha cruzada a descansar no sofá? É verdade que não inquiri nenhuma, mas a avaliar pelo que me pertence, apenas abandonei o contra relógio – confesso que ainda bem, já custava a dar conta dos meus dias a descair sobre noites incontroláveis -. Agora, é garantido: sou um ciclista da volta a Portugal, pedalo que me desunho, mas menos esbaforida que no contrarrelógio. Integrei o pelotão, digamos.
            Senão, repare: a gente reforma-se. E, sendo mulher, leva com a casa em cima por atacado. A casa e os atrelados: o jardim, se haja; as flores se ainda não secaram; as varandas e os alpendres que estejam vivos e mexam; as compras, Todas. Os doentes. E depois, você, minha cara - a tal que não quis reforma – poderá não saber, mas teoricamente, os reformados “fazem o que querem”. E have  plenty of time. Nunca vi ilusão mais parva! Ilusão dos outros, não de quem é pensionista. E menos do sexo feminino o qual tomo aqui a meu cargo. Afinal, vendo bem, não sei falar de homens, são um mundo à parte onde me estranho. Que eles sim, curtem sem pressa. Os que conheço, vão para o café com amigos e por lá ficam até lhes desapetecer; passeiam os netos e são uns queridos para eles porque não lhes fazem as sopas nem os bifes, raro lhes aturam as birras, não lhes lavam a roupa nem varrem a casa ou aspiram a sala depois daqueles montões de areia que arranjam não se sabe onde e trazem não se sabe como para dentro de portas; não arrumam os legos espalhados pela casa em inata tendência para o entre portas.
Por outro lado, as nossas queridas crianças, sangue do nosso sangue, rebentos viçosos que estremecemos, se se deitam à sesta querem a cama dos avós e não raro sujam as colchas e as almofadas porque nos esquecemos de um rebuçado ou metade de um chocolate pegado à prata; ou então cismam de beber o leite na caneca x e y sentados na cama e embirram que “já são grandes” e vão beber sozinhos. E, claro, entornam tudo.
Enfim. …há um mundo de coisas a cair, não equitativas, sobre os avós.
Oh! E as férias?! Um manancial de êxito. Se não haja netinhos, os filhos estarão ainda em casa. Trabalharam ou estudaram ano inteiro, merecem descanso. Portanto, afadigamo-nos em pródigos almoços e jantares a esmiuçar de cabeça o que cada um mais aprecia. Se estudantes com trabalho de férias, ai que deus que não pode nada, coitadinho, anda a ganhar para ele e nem interessa quanto amealhe, aprende o que custa viver. E logo os nossos horários de tudo saem obedientes ao turno. Se acaso saímos - o que nunca dá jeito nenhum - deixamos a roupa arranjada, o uniforme pronto, as refeições cozinhadas. Os nossos meninos trabalham. Merecem cama, mesa, roupa lavada. E nós, reformadas e sem trabalho, disponíveis ano inteiro, arranjamos coragem e entramos em limpezas. Afinal é Verão, os dias são maiores, e a casa também requer cuidados. Mas por que razão não se para com a vida de hábito quando entramos em fase de limpezas? É que não se entende. Nos centros comerciais, limpar exige cessar a função. Por que é que não fechamos também para barrela, não colocamos um letreiro protector, “encerrada para limpeza”?! Não. Limpamos sem falhar um átomo no circuito quotidiano; mas o humor paga. E como. Ora, neste capítulo das limpezas grandes, as alentejanas campeiam largamente; é que não deixam pedra sobre pedra. Portanto, são as mais limpinhas - mesmo quando não parece, são – mas também as de maior carranca. No fim de um dia de limpezas, ou tombam lassas e involuntárias ou ficam pontiagudas, enroladas sobre si como ouriço espinhudo.
Oh, mas a senhora, D. Lauren, não soube nada das portuguesas reformadas e menos das alentejanas. Viveu uma vida que fez sua e não se assemelha. De trabalho (oh, desculpe, mas dá-me vontade de rir esta sua afirmação). Pode até dizer que não a aguentaria como elas, que mandava tudo às urtigas (não diz porque está morta e os mortos…pronto, já se sabe, não podem retorquir).
Olhe, é propositado, não concluo. Entendo que o Além é um exercício do puro pensar. Deixo-a pois a matutar neste tipo de inferno em que se pode viver a desejar que, pelo menos, terminem as férias dos outros. É um período fatal e muito fatela. Pode crer.
Sinceramente sua

Beatriz

4 comentários:

  1. :) :) :) És o máximo!!! Com que então não tens que chegue????!!!! Eu te digo, que te faço a seleção!!!!!

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  2. Desculpa, só hoje, por desfastio, fui ver os comments que nunca há. E não é que desta vez havia?! :))

    Nã entendi essa coisa do robot nem da selecção. Mas sou um bocado básica, como sabes. As metáforas escapam-me tanto como as segundas intenções:)) Pergunto no meu português sem nós: a que te referias?!....

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  3. Desculpa, só hoje, por desfastio, fui ver os comments que nunca há. E não é que desta vez havia?! :))

    Nã entendi essa coisa do robot nem da selecção. Mas sou um bocado básica, como sabes. As metáforas escapam-me tanto como as segundas intenções:)) Pergunto no meu português sem nós: a que te referias?!....

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