terça-feira, 23 de setembro de 2014

Cama de Lodo

É um portão branco, pequeno, a meio de um gradeamento leve. Lá dentro, no pátio, sentados em bancos de jardim sem jardim, estão os velhos. Atravessa-se a portinhola e logo outro mundo. O reino da pré-morte. Onde tu moras. À entrada, no exterior, um locatário a imitar gente comum, como quem não pertence e acabou de chegar, vai entrar aí? E, como a desviar-se de algo repelente, acentuou o aí, a fixar-me acintoso, olhar destravado. Mirava-me com um desrespeito semi louco, de animal a desprender de hábitos sociais, na extravagância da minha presença dentro da casa; ou na ideia de que o lugar onde vives – e ele também - seja desaconselhável. O meu riso claro seguiu em ondas de encontro ao rosto anguloso de anos, a aproximar em morbidez de curiosidade senil, sim, aí mesmo, não posso? Então a sua expressão matizada em osso distendeu, o adunco do nariz mais suave, as maçãs do rosto menos agudas, dedos prestáveis a abrir um desajeitado portão, o corpo numa cortesia, a recuar um tudo nada. E passei, atenta ao letreiro, Porta Principal.
 Entrei e logo um bafo de urina a cumprimentar-me, reinando sobre a limpeza do chão. E os velhos nos lugares pareciam talheres em volta de pratos. Quietos. À mão. Virei à esquerda a tentar pensar noutra coisa, o cheiro a sobrepor e a complicar-me a cabeça. Percorri um corredor comprido e desemboquei na primeira sala, o cheiro acre constante, a preceder-me. Tantos que são os velhos! Parecem plantados por dentro da casa. Quietos. Ou de gestos a puir. Estes encontram-se frente a um intocado armário de livros. Não os vêem, ignoram-lhes as lombadas, os livros reduzidos ao ser que neles não está: são a parede em frente. Mais tarde, eu,  já não gostas de ler? E tu, no rabo-de-cavalo uma réstia da garota adormecida, não tenho paciência, só gosto de televisão e novelas. Reforço, e se trouxer revistas com muita fotografia? E tu, já não gosto, aborrece-me; só vejo televisão. Lá do canto uma velhota mirrada, ela só precisa de uns miminhos, não vale a pena outra coisa.
Continuo em frente, a dar boa tarde a todos os sofás que não me respondem, imersos em pensamentos dobrados; todos os sofás ocupados em desdobrar pensamentos, se fossem de papel seria um restolhar de folhas. Procuro-te no teu lugar de talher, junto à TV. E nada de ti. Estarás doente? Os velhos sentados em volta, olhinhos piscos, a lucidez adulterada, será para mim a visita? Eu na claridade da porta, saco na mão, indecisa, que é da Joaninha? Algumas pálpebras a baixarem devagar, não é comigo, duas velhotas prestáveis, foi à casa de banho, olha já aí vem.
Entras e reconheces-me. Satisfaço no teu jeito de cabisbaixa admiração, prima!... e vamos sentar-nos as duas no teu lugar, eu também de talher. Tens creme preso nas sobrancelhas. Ponho-me a espalhá-lo devagar, faço-te uma festa demorada no rosto, os teus olhos agradecidos. Digo, não desfaças o rabo-de-cavalo, fica-te bem. E tu, vou deixar crescer o cabelo. Depois falamos dos mortos que em ti continuam vivos e quando descobres a verdade, choras um pouco porque em ti não morreram e enlutas aos soluços da memória. Faz-me mal que repitas todos os fins das minhas frases, adoece-me, queres o quê?! Não consigo evitar. Conversas só meia frase, vais indo aos tropeções, de meia em meia frase, sempre a pegar na minha metade. Qual criança que experimenta os passos, sinto-te o esforço de pensar. E entremeias muita vez para os presentes que dependuram e nos preferem à TV, é a minha prima. Somos o foco: as primas.
Sempre que te visito lamento não saber de novelas, seria um assunto para desdobrar sobre a tarde e nós duas a investigá-lo quanto pudéssemos e a tua memória deixasse. Revelas tristonha a ignomínia da mana, tirou-me tudo: pulseiras, anéis, brincos, fio…não tenho nada. E agitas as mãos nuas e papudas de calmantes e inanição, o teu dedo inchado aponta a singeleza das orelhas, e em desolação palpas a nudez do decote. Ainda tens essas pulseiras, digo a olhar-te o braço esquerdo. E tu contente, trouxe-as da Guiné. Eu mázinha, ainda bem que as compraste de osso. E logo lanço um perfume, ficam-te tão bem. Quedas-te a afagá-las em silêncio, no jeito de quem passa a mão no pelo de um animal de regaço. Abro o saco e mostro-te artigos que penso poderás gostar. Preferes os pastéis de nata e hás-de levá-los para comer ao lanche. Eu de repente, Joaninha e se eu te trouxer um baton? Tu usas? E quase sorris, abanas a cabeça que sim e convicta, numa decisão, uso. Uso. Inquiro, e a cor? Tu, vermelho. E pronto, na próxima vez virá o teu baton vermelho. Foi assim que estiveste no meu casamento, com uma mala quase do teu tamanho e um baton vermelho. Tão loucamente bonita que doías à vista.
Amiúde, perguntas-me as horas. E sinto remorsos porque te queria trazer um relógio de presente e não o achei. Tinha pensado que talvez risses a sério. Faço outra busca aturada e há-de trabalhar junto às tuas pulseiras de osso. Palavra que não o usei e é a estrear. Olho-te na lembrança da última vez. Chamaste-me de parte, secreta, sabes quem eu sou? E eu, sim. Acreditas em mim? E perante o meu assentimento silencioso, sou a rainha Santa Isabel, tenho mais de setecentos anos e nunca morro. E depois puseste o teu ar mais triste, não morro nunca e estou tão farta de viver, mas não morro nunca. Olhaste no fundo dos meus olhos, dramática, acreditas? E eu de novo, sim. E tu sem transição, está quase na hora do lanche.
Mas hoje estás bem. Pergunto se queres saber as horas para ir lanchar e tu que sim. Tens a obsessão da comida. Depois, uma velha na tua frente, Joaninha mostra lá o quarto à prima. E tu levantas-te com o saco na mão e vais corredor fora. Sigo-te. Porém, quando passas ao refeitório entras sem olhar para trás, como em hipnose, a murmurar, já está na hora do lanche, é hora do lanche.

Estou parada a olhar-te as costas a afastar, já em pose de velha. De repente, o cheiro circunscreve-me, agonio e dou por mim cá fora às voltas com o trinco do portão branco agora isolado, o porteiro no afã de refeitório. Olho ainda a sala de refeições. Vejo-te pela janela e estás numa atenção de doença. Deixei de te existir. Tanto me dói a cabeça e não te existo.

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