domingo, 2 de novembro de 2014

Escapadelas Sem Crime

Ai o supremo enleio das viagens de comboio! É a paisagem a mudar, o verde a fazer casa como se alguém teime na cor, bisnaga de aguarela entornada em verdura. Gosto do abrandamento na corrida, da chiadeira a fazer nascer passo vagaroso nas pontes sobre os vales,  céu de casinhas de brincar que são manchas pequenas a branquejar na distância desprotegida. E nós dubitativos, e se o verde as engole. Mas a alma imersa, de joelhos, em contemplação e certeza, a murmurar, é um presépio de natal ainda deserto, só o musgo, casas, caminhos… Porém, sou uma mulher também prática, retiro os óculos, folheio novidades(?) e rostos de revista com trinta dias de atraso. Atento nas fotos e nada de envelhecerem, mantêm a frescura dos sorrisos ou grandes tristezas e estão nisto há mais de um mês. Para mim são novos e são agora por ser o momento de vê-los, a primeira vez de os meus olhos derramados. Não obstante o continuum da pose, tolhe-me um pouco este meu espírito de devassa en retard, sobre vidas que desconheço e nem me interessam, se alguém me pergunte, o que leste, eu, não sei. Penso em tanto dia de permeio, quem sabe os amores de Verão já não duram, as tristezas eclipsaram por magia, as casas com interior de revista onde um casal ou uma dama em pose que eles pensam de felicidade mas apenas sorrisos, maquilhagem, cabeleireiros, pedicura, manicura e mais outras curas que não curam nada, só disfarçam. Cozinhas que não conhecem cheiros de comida, habituadas a perfume caro de passagem e com rasto, um avental nunca usado, as dobras de ferro e o duro da goma a protestar, tiraram-me do sítio para quê, já não sei para que sirvo. Uma linda de colher de pau na mão, a fingir que vai mexer uma panela reluzente sobre a placa que nem sabe acender porque as mulheres agora são profissionais como os homens, deram o grito do Ipiranga e a cozinha fica para quem. Soa a ininteligível, se deram o gritinho, por que diabo teimam em estar de colher de pau na mão, em função que abandonaram? Não se sabe. Ou sabe-se. Talvez seja porque às pernilongas – são todas pernilongas – envolvidas em matas de cabelo sedoso (não vou aqui esmiuçar se delas ou não, se lhes está na cabeça pertence-lhes e pronto), fica bem o avental. Pois imagino  essas casas varridas por um ciclone mal-educado que levou para longe as figurinhas de papel, as pernilongas a esticar braços pequenos, agarra-me, mas o papel a subir na brisa forte, elas a tremer num susto, tenho vertigens, ai de mim se caio num charco, antes a morte súbita. E os parceiros desemparceirados, num salve-se quem puder que as revistas não anunciam. O vento escancarou janelas, afastou cortinas, partiu e misturou descompondo a mise-en-scène, flores expulsas de jarras de cristal, a aguçar carpélios pelo chão depois de danças loucas de aqui e ali, ora numa parede ora noutra, onde todas se esfolaram, num atropelo de pétalas em carne-viva de flor, encharcadas, e agora? 
A fotografia é assim esta oposição entre o momento fixado e o seu devir imaginário que empurra para o movimento e tende a contrariar a inércia. Mas também nós. Por vezes, inertes fotografados. Que pode interessar se cristalizámos em sorriso?! A fotografia mortaliza-nos, reduz-nos ao momento da objectiva, é a sombra da caverna de cada um. Olhá-las afaga-nos a saudade sem lhe tocar a dimensão, mesmo que um afã de beijos nos suba à boca, mesmo que os olhos de papel nos recebam, vem, a gente para o papel, isso é o quê; e ele não tem resposta senão de papel. Como as pernilongas.
Ainda dentro de ser prática, enjoada de tanto papel, verifico a contracurva do meu interesse. Procuro na mala o tricot e lanço-me no mundo artesanal e concreto enquanto olho a paisagem de soslaio. A cimentar o propósito, digo para dentro, nada de pensares palermices, e começo a contar as malhas da trança, uma, duas, três…. Então um golpe de vento cola no vidro da carruagem uma pernilonga insistente, as pessoas, e esta quem é, donde saiu a boneca de papel que ainda há bocadinho o vidro estava limpo, e olham umas para as outras a tentar descobrir fraquezas, quem será que brinca ainda com estas bonecas? Alheia a pormenores, a minha veia maternal abre o vidro para lhe recolher as amolgadelas, a puxá-la pela saia ou por uma alça qualquer para junto de nós. Depois, compor-lhe a blusinha rasgada e animá-la  que já lhe basta uma casa desfeita e sem parceiro de sorrisos e outras coisas. Mas o comboio vira ligeiramente, o vento abandona-a e ela cai sobre as pedras levemente, em gritinhos abafados de papel que mal se ouvem, que, que, que…. Debruço-me para verificar se vive e noto-lhe o breve agitar das pernas cada vez mais pequenas, a parecer uma tesourinha de cortar as unhas dos pés. Respiro, está viva. Uma criança que se debruçou comigo, a mãe se cais rebento-te a cara, e ela para mim científica, olho clínico, aquilo pode ser o vento a bater-lhe nas pernas e ela estar morta. E depois, em morbidez infantil, deve é ter batido com a cabeça numa pedra e morreu logo. A mãe, anda cá que já te dou o arroz; sentenças tens tu muitas. O casal em frente já enjoado do assunto, os cabelos dela num vendaval desfigurado, pode fechar a janela se faz favor.
Fechei o vidro e sentei-me a enrolar o tricot que abandonado a si mesmo rolara sob o banco e dera uma voltinha no corredor, o novelo numa euforia, viva, estou livre das agulhas, vou dar uma curva. Entretanto, a mãe que não era era eu assoava o nariz ao filho resmungando entre dentes, sais ao teu pai, andas sempre todo ranhoso, mas que martírio o meu. E logo eu involuntária a topar um homem todo ranhoso e sem lenços de papel.
O garoto a piscar-me um olho matreiro por detrás da enormidade do lenço. A mãe numa pedrada macia, moncoso. Resolvi que era chegado o tempo da leitura e arrumei as agulhas. Elas em obediência canina, a escorregarem no entardecer do saco, mansamente, amanhã há mais. E adormeceram.


Nota: Que saudade dos comboios com vidros que desciam a hesitar perrices e nós cabeça de fora, a dar mãos e braços a quem ficava e nos seguia até sermos cabecinha de alfinete na distância. 

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