Ai o
supremo enleio das viagens de comboio! É a paisagem a mudar, o verde a fazer
casa como se alguém teime na cor, bisnaga de aguarela entornada em verdura.
Gosto do abrandamento na corrida, da chiadeira a fazer nascer passo
vagaroso nas pontes sobre os vales, céu de casinhas de brincar que são
manchas pequenas a branquejar na distância desprotegida. E nós dubitativos, e
se o verde as engole. Mas a alma imersa, de joelhos, em contemplação e certeza,
a murmurar, é um presépio de natal ainda deserto, só o musgo, casas, caminhos…
Porém, sou uma mulher também prática, retiro os óculos, folheio novidades(?) e
rostos de revista com trinta dias de atraso. Atento nas fotos e nada de
envelhecerem, mantêm a frescura dos sorrisos ou grandes tristezas e estão nisto
há mais de um mês. Para mim são novos e são agora por ser o momento de vê-los,
a primeira vez de os meus olhos derramados. Não obstante o continuum da pose, tolhe-me um pouco este meu
espírito de devassa en retard, sobre vidas que desconheço e nem
me interessam, se alguém me pergunte, o que leste, eu, não sei. Penso em tanto
dia de permeio, quem sabe os amores de Verão já não duram, as tristezas
eclipsaram por magia, as casas com interior de revista onde um casal ou uma
dama em pose que eles pensam de felicidade mas apenas sorrisos, maquilhagem,
cabeleireiros, pedicura, manicura e mais outras curas que não curam nada, só
disfarçam. Cozinhas que não conhecem cheiros de comida, habituadas a perfume
caro de passagem e com rasto, um avental nunca usado, as dobras de ferro e o
duro da goma a protestar, tiraram-me do sítio para quê, já não sei para que
sirvo. Uma linda de colher de pau na mão, a fingir que vai mexer uma panela
reluzente sobre a placa que nem sabe acender porque as mulheres agora são
profissionais como os homens, deram o grito do Ipiranga e a cozinha fica para
quem. Soa a ininteligível, se deram o gritinho, por que diabo teimam em estar
de colher de pau na mão, em função que abandonaram? Não se sabe. Ou sabe-se.
Talvez seja porque às pernilongas – são todas pernilongas – envolvidas em matas
de cabelo sedoso (não vou aqui esmiuçar se delas ou não, se lhes está na cabeça
pertence-lhes e pronto), fica bem o avental. Pois imagino essas casas
varridas por um ciclone mal-educado que levou para longe as figurinhas de papel,
as pernilongas a esticar braços pequenos, agarra-me, mas o papel a subir na
brisa forte, elas a tremer num susto, tenho vertigens, ai de mim se caio num
charco, antes a morte súbita. E os parceiros desemparceirados, num salve-se
quem puder que as revistas não anunciam. O vento escancarou janelas, afastou
cortinas, partiu e misturou descompondo a mise-en-scène, flores expulsas de jarras de cristal,
a aguçar carpélios pelo chão depois de danças loucas de aqui e ali, ora numa
parede ora noutra, onde todas se esfolaram, num atropelo de pétalas em
carne-viva de flor, encharcadas, e agora?
A
fotografia é assim esta oposição entre o momento fixado e o seu devir
imaginário que empurra para o movimento e tende a contrariar a inércia. Mas
também nós. Por vezes, inertes fotografados. Que pode interessar se
cristalizámos em sorriso?! A fotografia mortaliza-nos, reduz-nos ao momento da
objectiva, é a sombra da caverna de cada um. Olhá-las afaga-nos a saudade sem
lhe tocar a dimensão, mesmo que um afã de beijos nos suba à boca, mesmo que os
olhos de papel nos recebam, vem, a gente para o papel, isso é o quê; e ele não
tem resposta senão de papel. Como as pernilongas.
Ainda
dentro de ser prática, enjoada de tanto papel, verifico a contracurva
do meu interesse. Procuro na mala o tricot e lanço-me no mundo artesanal e
concreto enquanto olho a paisagem de soslaio. A cimentar o propósito, digo para
dentro, nada de pensares palermices, e começo a contar as malhas da trança,
uma, duas, três…. Então um golpe de vento cola no vidro da carruagem uma
pernilonga insistente, as pessoas, e esta quem é, donde saiu a boneca de papel
que ainda há bocadinho o vidro estava limpo, e olham umas para as outras a
tentar descobrir fraquezas, quem será que brinca ainda com estas bonecas?
Alheia a pormenores, a minha veia maternal abre o vidro para lhe recolher as
amolgadelas, a puxá-la pela saia ou por uma alça qualquer para junto de
nós. Depois, compor-lhe a blusinha rasgada e animá-la que já lhe
basta uma casa desfeita e sem parceiro de sorrisos e outras coisas. Mas o
comboio vira ligeiramente, o vento abandona-a e ela cai sobre as pedras
levemente, em gritinhos abafados de papel que mal se ouvem, que, que, que….
Debruço-me para verificar se vive e noto-lhe o breve agitar das pernas cada vez
mais pequenas, a parecer uma tesourinha de cortar as unhas dos pés. Respiro,
está viva. Uma criança que se debruçou comigo, a mãe se cais rebento-te a cara,
e ela para mim científica, olho clínico, aquilo pode ser o vento a bater-lhe
nas pernas e ela estar morta. E depois, em morbidez infantil, deve é ter batido
com a cabeça numa pedra e morreu logo. A mãe, anda cá que já te dou o arroz;
sentenças tens tu muitas. O casal em frente já enjoado do assunto, os cabelos
dela num vendaval desfigurado, pode fechar a janela se faz favor.
Fechei
o vidro e sentei-me a enrolar o tricot que abandonado a si mesmo rolara sob o
banco e dera uma voltinha no corredor, o novelo numa euforia, viva, estou livre
das agulhas, vou dar uma curva. Entretanto, a mãe que não era era eu assoava o
nariz ao filho resmungando entre dentes, sais ao teu pai, andas sempre
todo ranhoso, mas que martírio o meu. E logo eu
involuntária a topar um homem todo ranhoso e sem lenços de papel.
O
garoto a piscar-me um olho matreiro por detrás da enormidade do lenço. A mãe
numa pedrada macia, moncoso. Resolvi que era chegado o tempo da leitura e
arrumei as agulhas. Elas em obediência canina, a escorregarem no entardecer do
saco, mansamente, amanhã há mais. E adormeceram.
Nota: Que saudade dos
comboios com vidros que desciam a hesitar perrices e nós cabeça de fora, a dar
mãos e braços a quem ficava e nos seguia até sermos cabecinha de alfinete na
distância.
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