Chegou-me
assim, enregelada dos frios, branca de cal. Olhei numa incompreensão os seus cabelos
de arabesco, desalinhados na definição do rosto. Estendi a mão, toquei-a na
vontade de um abraço protector, do alinhamento impossível dos fios transidos a
escorrer-lhe a pele. Então, na ponta dos dedos, senti a retracção involuntária,
o calor morno a esmaecer na lisura do seu toque macio. Moldei-lhe a face com a
mão, lentamente, num gesto quase grato pela enigmática presença. Observei-a
longamente, atento, buscando familiaridades, o coração sincopado, a desejá-la e
repeli-la em cada batimento. Fechada em ignaro mutismo, ressumava uma frieza talvez
desdenhosa. Mirei-lhe a altura dos saltos, a elegância de capa, a harmonia
singela das linhas. Linda, sim. Mas tão unicamente frágil! Se eu quisesse
destruía-te, pensei. De seguida, emendei o tempo da acção, se eu quiser
amarfanho-te o ego; se me apetecer, elimino a tua clara distinção. E logo
depois, a reparar-lhe o jeito cândido, de entrecortada novidade, não sou capaz,
não consigo erguer muros altos entre nós; são paredes de palavras, desaparecem
sem rasgão. A reconhecer o meu estatuto falso, a minha força fraca, se tu abres
um sol, desmancho-me. Derreto.
Sentei-me
na sensação de quem está no hall, em espera ansiosa, antevendo nada. Entretive-me
a imaginar-lhe o fogo interno, qualquer lume que, sem queimar, lhe alimentasse as
combustões e aquecesse o sangue. Persisti na imagem, tinha que ter sangue e
órgãos internos e circulações e coração. A sua palidez escondia vísceras,
sentimentos, pequenos tiques quotidianos. Nela cabiam palavras inóquas e sagazes,
as ternuras da seda, mas também o risco da unha no vidro. Reparei-a mais uma
vez e já me convidava, chegada, quem sabe, do seu lado familiar. Ou talvez eu
lhe tivesse lançado uma ponte e assim a fizesse próxima. Talvez.
Então,
numa angústia incerta, tomei-a a mãos ambas e perscrutei-lhe o rosto. Ficámos
assim, frente a frente. Eu a buscar-lhe
a alma absolutamente impenetrável.
Ela, impassível e paciente, no mesmo desafio mudo da chegada e que agora
me surgia diferente: toma-me, aceita-me. Eu meio débil, quase a capitular ao
desconhecido. A saber que é em mim que a rasgarei. A despi-la da capa e procurar-lhe
o incognoscível da presença adivinhada.
Depois,
tapei-a brandamente, o envelope agasalhando pudores. E saí para o incrível do
dia, a meditar na humanidade de S. Tomé, acredito se.
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