segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A neve cai em estrela...ou será em flor?!

Chegou-me assim, enregelada dos frios, branca de cal. Olhei numa incompreensão os seus cabelos de arabesco, desalinhados na definição do rosto. Estendi a mão, toquei-a na vontade de um abraço protector, do alinhamento impossível dos fios transidos a escorrer-lhe a pele. Então, na ponta dos dedos, senti a retracção involuntária, o calor morno a esmaecer na lisura do seu toque macio. Moldei-lhe a face com a mão, lentamente, num gesto quase grato pela enigmática presença. Observei-a longamente, atento, buscando familiaridades, o coração sincopado, a desejá-la e repeli-la em cada batimento. Fechada em ignaro mutismo, ressumava uma frieza talvez desdenhosa. Mirei-lhe a altura dos saltos, a elegância de capa, a harmonia singela das linhas. Linda, sim. Mas tão unicamente frágil! Se eu quisesse destruía-te, pensei. De seguida, emendei o tempo da acção, se eu quiser amarfanho-te o ego; se me apetecer, elimino a tua clara distinção. E logo depois, a reparar-lhe o jeito cândido, de entrecortada novidade, não sou capaz, não consigo erguer muros altos entre nós; são paredes de palavras, desaparecem sem rasgão. A reconhecer o meu estatuto falso, a minha força fraca, se tu abres um sol, desmancho-me. Derreto.
Sentei-me na sensação de quem está no hall, em espera ansiosa, antevendo nada. Entretive-me a imaginar-lhe o fogo interno, qualquer lume que, sem queimar, lhe alimentasse as combustões e aquecesse o sangue. Persisti na imagem, tinha que ter sangue e órgãos internos e circulações e coração. A sua palidez escondia vísceras, sentimentos, pequenos tiques quotidianos. Nela cabiam palavras inóquas e sagazes, as ternuras da seda, mas também o risco da unha no vidro. Reparei-a mais uma vez e já me convidava, chegada, quem sabe, do seu lado familiar. Ou talvez eu lhe tivesse lançado uma ponte e assim a fizesse próxima. Talvez.
Então, numa angústia incerta, tomei-a a mãos ambas e perscrutei-lhe o rosto. Ficámos assim, frente a frente. Eu a buscar-lhe  a alma absolutamente impenetrável.  Ela, impassível e paciente, no mesmo desafio mudo da chegada e que agora me surgia diferente: toma-me, aceita-me. Eu meio débil, quase a capitular ao desconhecido. A saber que é em mim que a rasgarei. A despi-la da capa e procurar-lhe o incognoscível da presença adivinhada.

Depois, tapei-a brandamente, o envelope agasalhando pudores. E saí para o incrível do dia, a meditar na humanidade de S. Tomé, acredito se.

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