Ainda
hoje, se leio uma notícia do Entroncamento, vem-me a nostalgia dos fenómenos
que dantes se narravam, ocorrências inéditas a que eu dava a competente imagem.
O Entroncamento acompanhou-me a meninice, cresceu-me no imaginário e fê-lo
crescer. As minhas tia-avós e avós propriamente ditas contribuíam para o
aparato acrescentando sem cessar a lista, num diz-que-diz em que
eu cria piamente, duvidando apenas do espaço para tanta desnatura e construindo
mentalmente um lugar de conto horrível onde a cada esquina espreitava um
portento único e disforme. Por muito insignificante que a localidade seja, a
meus olhos há-de ter uma beleza toda outra da desproporção que criei baseada no
linguajar das velhas que me fizeram a infância.
Pareceria
fatal, mas nunca sonhei com o Entroncamento. Ali nasciam pessoas com duas
cabeças; homens com quatro braços e que para mim nunca tinham sido crianças;
gigantes que não cabiam nas casas e era uma maçada para a família
acomodá-los, a subir paredes e telhado à medida que iam crescendo;
maçãs do tamanho de melancias. E um nunca acabar de outros seres descomunais
vindos do reino vegetal, que me faziam desconfiar do solo. Não contentes com as
desgraças que contavam – os fenómenos humanos eram todos deformidade –, elas, a
voz a apequenar-se, compraziam-se em comentários de pena e dor d'alma, dirigidos sobretudo às coitadinhas
das mães e empregavam num ai todos os aleijões. Era assim, sem qualquer
intenção, que as mulheres resolviam o problema da falta de espaço no
Entroncamento: o circo levava-os. Para mim, estavam encerrados nos carros e roulotes,
proibidos de espreitar às janelinhas para não assustar as pessoas. E inventava
uma história de escravatura à medida da enormidade de tendas, palco e bancadas,
de inspiração Enid Blyton, “Os cinco e o circo”, onde havia um homem mau carácter.
Mas
o que verdadeiramente me desapontava era o aziago dos fenómenos a embicarem, universais, para o epicentro. O Entroncamento, segundo as minhas fontes bisborreicas,
saía sempre no jornal e o nosso lugarejo reduzido a um “nunca por nunca ser”.
Não me soava justo. Resmunguei esta queixa para os outros garotos, mas não lhe
pegaram e quando pedi que se lembrassem de alguma coisa anómala remataram e deram nó, “vamos
jogar às escondidas, ficas tu a contar”. Em função do desinteresse e ingratidão geral, desisti de encontrar fenómenos e trazer à ribalta a nossa terrinha pequena.
Porém,
quando tinha uns treze anos, fui, em visita de estudo, a Lagos. Pela primeira
vez, observei um fenómeno da categoria dos que as velhotas contavam. No museu,
completamente embebido em formol, branco de ácido e dentro de um frasco, um vitelinho com duas
cabeças. Adiantei que seria do Entroncamento, mas as professoras e as minhas
colegas apenas riram. Quando inquiri a professora de Ciências sobre as razões
do formol ela retorquiu que quase sempre, nos casos de deformação profunda, os
animais nascem mortos ou morrem logo após e conservam-nos assim durante anos e
anos. O meu mundo fenoménico vacilou profundamente: fenómenos mortos nem eu
sabia que existissem. O drama da realidade factual de qualquer fenómeno,
desmontado sob o meu nariz, fez-me entender a sua violência física; uma
violência que podia arrebatar a vida. Da violência psicológica, sabia nada. Mas
nesse momento, abençoei o meu lugarejo vulgar, repleto de gente e factos comuns.
Então, “a mulher que voou” era imprevista. Mas todas as histórias começam pelo
princípio. E o princípio é a infância. O da mulher voadora foi, indubitavelmente, esse.
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