A
frequência com que desatinamos da sorte marca-nos o carácter. Porém, e a vida é
prova irrefutável, a sorte tem rota circular, dá sempre a volta (por
gosto amarrado às elipses condescendo, pode ser elíptica a curva). Portuguesmente
falando, algum bem dela resulta. Há-de irromper.
Falta assertividade ao parágrafo acima. Releio e verifico que as ideias meio dúbias, a entortar na concretude. Sugestivo, o delete espreita. Resisto-lhe a gosto e não por esforço da vontade, acontece que entre duas hipóteses - deletar uma ideia ou conservá-la na sua impureza - prefiro a segunda. Julgo que seja a noção de irremediável o que me tolhe os dedos. É que substituir palavras ou expressões é dar à ideia um acinte de maior rigor, aproximar a escrita dela. Mas deletar um parágrafo é matá-la. A perda da ideia assusta-me. Ora, esta tendência conservadora, como é
sabido, não previne dissabores.
Extrapolando preâmbulos e subjectividades mais largas: o que pretendo fixar em letra portuguesa é que a boa e má sorte existem e dependem em parte de causas externas, acontecimentos e pessoas, estados e situações. E outros que não me ocorrem. Mas também de cada homem. E lá vem a determinante e perturbadora causa interna.
Extrapolando preâmbulos e subjectividades mais largas: o que pretendo fixar em letra portuguesa é que a boa e má sorte existem e dependem em parte de causas externas, acontecimentos e pessoas, estados e situações. E outros que não me ocorrem. Mas também de cada homem. E lá vem a determinante e perturbadora causa interna.
Fiz
em tempos a apologia da vontade, amava Sartre de paixão (a mente e não o homem
que os vesgos impressionam-me um bocado) e tinha a ideia de que o ser humano era
um camião a fazer estrada em caminhos inaugurais. A pulso. Comandado por essa
vontade inquebrável e a mesma ao longo dos tempos. Ora a vontade não é
inquebrável, o homem não desbrava nada, dentro dele há um matagal sem destino e
às vezes sem direcção, e coisa alguma é a mesma ao longo dos tempos. Na
correnteza dos anos (muitos), descobri, ó coisa incrível, que o que mais importa na sorte (boa e má ou
assim-assim) é a atitude de recebê-la. O como de olhá-la. Dir-me-ão, tanto ano
para encostares a coisa tão pequena, um átomo na poeira universal. Ah, pois é.
Mas é o meu átomo. Tenho plena consciência que toda a gente descobre isto. Mais
tarde. Ou mais cedo. Mas já não busco os tais caminhos inaugurais. O que
espero dos outros homens, sinceramente e para o seu próprio bem, é que também eles façam a sua descoberta. Não vale recolher do chão a certeza dos outros, ou retirá-la
de sobre a mesa, ou fisgá-la de um livro. Porque as vitais certezas de outrém
não são firmes em nós. Essa é que é essa.
E
agora pode vir tudo, porque me encontro uma pessoa de sorte. E como já vivi
muito ano, de muita sorte. Herdei uma alma – bem sei que não me pertence e só a
uso – que se comove com as pequenas coisas (o que dá muito jeito porque as
grandes não me aparecem), vivo a menos de 100 km de Lisboa e posso, de vez em
quando, passear e ver e ouvir o que aprecio. O facto de ser esporádico aumenta-me o desejo e os planos. E tenho duas ou três amigas que gostam de mim e vejo pouco; mas se
acontece, inunda-se-me o coração. E posso comprar um ou outro livro que aprecio um imenso, desde o estar a comprá-lo ou até antes; faz-me parte do prazer pensar em lê-lo. E gosto
das manhãs e do pequeno-almoço com cheiro a café pela casa. E ainda posso nadar
(não sei até quando, mas isso faz mais raro o gosto e o momento). E escrevo se
me apetece. Puro prazer, sim. O meu amor à escrita deve ser verdade porque até
actas e listas de compras me entusiasmam.
E
as coisas maiores? Deixo. Despojo-me. A alegria está sempre em botão. Ora os
botões são lindos, mas quase sempre diminutos.
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