segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Viver

A frequência com que desatinamos da sorte marca-nos o carácter. Porém, e a vida é prova irrefutável, a sorte tem rota circular, dá sempre a volta (por gosto amarrado às elipses condescendo, pode ser elíptica a curva). Portuguesmente falando, algum bem dela resulta. Há-de irromper.
Falta assertividade ao parágrafo acima. Releio e verifico que as ideias meio dúbias, a entortar  na concretude. Sugestivo, o delete espreita.  Resisto-lhe a gosto e não por esforço da vontade, acontece que entre duas hipóteses - deletar uma ideia ou conservá-la na sua impureza -  prefiro a segunda. Julgo que seja a noção de irremediável o que me tolhe os dedos. É que substituir palavras ou expressões é dar à ideia um acinte de maior rigor, aproximar a escrita dela. Mas deletar um parágrafo é matá-la. A perda da ideia assusta-me. Ora, esta tendência conservadora, como é sabido, não previne dissabores. 
Extrapolando preâmbulos e subjectividades mais largas: o que pretendo fixar em letra portuguesa é que a boa e má sorte existem e dependem em parte de causas externas, acontecimentos e pessoas, estados e situações. E outros que não me ocorrem. Mas também de cada homem. E lá vem a determinante e perturbadora causa interna.
Fiz em tempos a apologia da vontade, amava Sartre de paixão (a mente e não o homem que os vesgos impressionam-me um bocado) e tinha a ideia de que o ser humano era um camião a fazer estrada em caminhos inaugurais. A pulso. Comandado por essa vontade inquebrável e a mesma ao longo dos tempos. Ora a vontade não é inquebrável, o homem não desbrava nada, dentro dele há um matagal sem destino e às vezes sem direcção, e coisa alguma é a mesma ao longo dos tempos. Na correnteza dos anos (muitos), descobri, ó coisa incrível, que  o que mais importa na sorte (boa e má ou assim-assim) é a atitude de recebê-la. O como de olhá-la. Dir-me-ão, tanto ano para encostares  a coisa tão pequena, um átomo na poeira universal. Ah, pois é. Mas é o meu átomo. Tenho plena consciência que toda a gente descobre isto. Mais tarde. Ou mais cedo. Mas já não busco os tais caminhos inaugurais. O que espero dos outros homens, sinceramente e para o seu próprio bem, é que também eles façam a sua descoberta. Não vale recolher do chão a certeza dos outros, ou retirá-la de sobre a mesa, ou fisgá-la de um livro. Porque as vitais certezas de outrém não são firmes em nós. Essa é que é essa.
E agora pode vir tudo, porque me encontro uma pessoa de sorte. E como já vivi muito ano, de muita sorte. Herdei uma alma – bem sei que não me pertence e só a uso – que se comove com as pequenas coisas (o que dá muito jeito porque as grandes não me aparecem), vivo a menos de 100 km de Lisboa e posso, de vez em quando, passear e ver e ouvir o que aprecio. O facto de ser esporádico  aumenta-me o desejo e os planos. E tenho duas ou três amigas que gostam de mim e vejo pouco; mas se acontece, inunda-se-me o coração. E posso comprar um ou outro livro que aprecio um imenso, desde o estar a comprá-lo ou até antes; faz-me parte do prazer pensar em lê-lo. E gosto das manhãs e do pequeno-almoço com cheiro a café pela casa. E ainda posso nadar (não sei até quando, mas isso faz mais raro o gosto e o momento). E escrevo se me apetece. Puro prazer, sim. O meu amor à escrita deve ser verdade porque até actas e listas de compras me entusiasmam.

E as coisas maiores? Deixo. Despojo-me. A alegria está sempre em botão. Ora os botões são lindos, mas quase sempre diminutos.

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