quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Azar


Todas as coisas têm a sua vez primeira. Por algumas esperamos anos a fio, esvaídos em cansaço que rodeamos de imprecações danosas, cacos de vidro a inibir a esperança. Não foi o caso. A primeira ópera aconteceu-lhe. Ou, completamente expurgada de casualidade, foi mera consequência do seu carácter: escolheu-a ao acaso e sem lhe saber o género, não buscou informação do que fosse e arrumou-a logo que o concreto da vida se impôs repleto de factos, e pessoas, e horas, e pormenores ínfimos batendo-se por um espaço. Sem razão, fixou um horário que não era e apôs-lhe a súmula: é trabalho de orquestra, há um maestro e tem momentos de canto, deve ser isso.

E hoje é o dia. Logo, imprime o bilhete, verifica o engano e parte em companhia, a calcular a demora da viagem, avaliando tarefas que deixou inacabadas e esquecimentos inevitáveis. O telemóvel. Por exemplo. Chega e logo as suas mãos circunscritas ao fogão, a preparar um agrado de paladar, gosto para si insalubre por  apressado. Parte de novo. Só. À descoberta. Muito pouco sabe de Mozart e também por isso o escolheu.

Como de hábito, chega sobre a hora. Senta-se esbaforida meditando naquele ansiado hiato de espera, o campo de hipóteses uma vastidão ainda em aberto. Ilumina-se o palco e surgem os elementos da orquestra. É um campo incrível o que as mãos transportam e treinaram na morosidade das horas, harmonia conquistada ao esforço, grácil suavidade com morada inscrita na persistência. Em tons de Inverno, acintosa face ao “casual” da plateia, a elegância das mulheres destaca. Usam traje longo, braços sombreados por ligeireza de véus que os homens acompanham de fraque, em rigor de pés que refulgem verniz. A entrada dos músicos esparge uma beleza vagarosa que a reanima. Caminham  sem pressas, o instrumento na sua frente, mãos em cuidados de flor a que a brisa insuspeita pode roubar pétalas. E vão tomando posse do lugar que habitarão em plenitude. Movem-se como se em vez do palco pisem nuvens e seja ali o Olimpo. A plateia não lhes existe. No lugar da muita gente erguem uma parede, concentram-se, isolados na função. Ela anota que se vão entretendo, murmúrios surdinados de um a outro, gestos de endireitar pautas e brevidade de acordes soltos, aqui e ali um sorriso para alguém do outro lado do maestro, ainda ausente. Pensa, estão a reconhecer-se como parte de um todo, a imbuir no papel.

A plateia olha-os expectante. Quem sabe, curiosa. Ou apenas distraída, aquietando-se. No ar, o som morno de vaga vai subsumindo na proporção directa dos pés em descanso. Se olharmos, pensa ela, estamos todos a existir entre a cabeça e a cintura; os mais baixos, talvez só a partir do peito. Porém, o maestro interrompe-lhe o delírio. Faz uma entrada sob palmas, cumprimenta, as luzes baixam incompreensíveis e o silêncio condensa, qual matéria. A um sinal seu, a música cresce e caminha sobre ele, avança alcançando as pessoas, a rodeá-las. Forte. Concêntrica. E ela revive o tamanho da saudade, sente-lhe o princípio de morte no prazer da harmonia que irradia.

Pensa no Mozart de Amadeus de que só viu o início e entende-o ali, em afirmação furiosa de vida, trocista, talvez até um pouco ingénuo. Ainda tudo é possível, não sabe que é uma ópera, ignora-lhe a história, desconhece o francês que a escreveu.

Mas não a move como a música sozinha. No belcanto ouve estridências que não são e lhe repugnam. Terá má vontade. Preconceito. Está armada contra ele. Contudo, salva-lhe o canto mais saudoso. Ou o mais infeliz, talvez. São ambos suaves. Que os agudos doem por dentro, esgatanham-lhe a cabeça até à dor física que não pára.

Sai zonza e apalermada para a noite, a respirar golfadas de poluição que lhe surge purificada, o barulho do trânsito numa toada agradável. Lisboa fecha-se em casa e recebe-a deserta de gente. Nos automóveis, pessoas ajeitadas em conforto, a enxotar o frio da noite que a si apraz. Sorri ao passar junto a uma casa apalaçada, a brancura translúcida de cortinas a resguardar indiscrições. Como será o espírito de quem vive imerso nesta beleza quotidiana, que preocupações escarafuncham a mente de tais pessoas. Pára um momento, admira-lhe a harmonia de linhas, o bom gosto da arquitectura de pormenor, o seu ser acabado e airoso de solar em serventia. Apetece-lhe atravessar a rua de novo, aproximar o rosto das grades, ficar ali a espreitar-lhe um jeito familiar esquecido, um sinal de humanidade que se lhe escape do hermetismo e garanta que não se plantou ali por magia, caída do nada, a espantar quem a descubra. Ah! Poder investigar-lhe o sinal inequívoco de não ser a casa encantada da floresta de betão que se esvai pela manhã. Mas, em vez disso, mergulhou na boca escancarada do metro.

 Dirá mais tarde das bodas de Fígaro, “Gostei; já vi uma ópera”. Contudo, bem o sabe, é diacronia a não repetir.  

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