Todas
as coisas têm a sua vez primeira. Por algumas esperamos anos a fio, esvaídos em
cansaço que rodeamos de imprecações danosas, cacos de vidro a inibir a
esperança. Não foi o caso. A primeira ópera aconteceu-lhe. Ou, completamente
expurgada de casualidade, foi mera consequência do seu carácter: escolheu-a ao
acaso e sem lhe saber o género, não buscou informação do que fosse e arrumou-a
logo que o concreto da vida se impôs repleto de factos, e pessoas, e horas, e
pormenores ínfimos batendo-se por um espaço. Sem razão, fixou um horário que
não era e apôs-lhe a súmula: é trabalho de orquestra, há um maestro e tem
momentos de canto, deve ser isso.
E
hoje é o dia. Logo, imprime o bilhete, verifica o engano e parte em companhia, a
calcular a demora da viagem, avaliando tarefas que deixou inacabadas e
esquecimentos inevitáveis. O telemóvel. Por exemplo. Chega e logo as suas mãos
circunscritas ao fogão, a preparar um agrado de paladar, gosto para si insalubre
por apressado. Parte de novo. Só. À
descoberta. Muito pouco sabe de Mozart e também por isso o escolheu.
Como
de hábito, chega sobre a hora. Senta-se esbaforida meditando naquele ansiado hiato
de espera, o campo de hipóteses uma vastidão ainda em aberto. Ilumina-se o
palco e surgem os elementos da orquestra. É um campo incrível o que as mãos
transportam e treinaram na morosidade das horas, harmonia conquistada ao
esforço, grácil suavidade com morada inscrita na persistência. Em tons de
Inverno, acintosa face ao “casual” da plateia, a elegância das mulheres destaca.
Usam traje longo, braços sombreados por ligeireza de véus que os homens
acompanham de fraque, em rigor de pés que refulgem verniz. A entrada dos
músicos esparge uma beleza vagarosa que a reanima. Caminham sem pressas, o instrumento na sua frente,
mãos em cuidados de flor a que a brisa insuspeita pode roubar pétalas. E vão
tomando posse do lugar que habitarão em plenitude. Movem-se como se em vez do
palco pisem nuvens e seja ali o Olimpo. A plateia não lhes existe. No lugar da muita
gente erguem uma parede, concentram-se, isolados na função. Ela anota que se
vão entretendo, murmúrios surdinados de um a outro, gestos de endireitar pautas
e brevidade de acordes soltos, aqui e ali um sorriso para alguém do outro lado
do maestro, ainda ausente. Pensa, estão a reconhecer-se como parte de um todo,
a imbuir no papel.
A
plateia olha-os expectante. Quem sabe, curiosa. Ou apenas distraída, aquietando-se.
No ar, o som morno de vaga vai subsumindo na proporção directa dos pés em
descanso. Se olharmos, pensa ela, estamos todos a existir entre a cabeça e a
cintura; os mais baixos, talvez só a partir do peito. Porém, o maestro
interrompe-lhe o delírio. Faz uma entrada sob palmas, cumprimenta, as luzes
baixam incompreensíveis e o silêncio condensa, qual matéria. A um sinal seu, a
música cresce e caminha sobre ele, avança alcançando as pessoas, a rodeá-las.
Forte. Concêntrica. E ela revive o tamanho da saudade, sente-lhe o princípio de
morte no prazer da harmonia que irradia.
Pensa
no Mozart de Amadeus de que só viu o início e entende-o ali, em afirmação
furiosa de vida, trocista, talvez até um pouco ingénuo. Ainda tudo é possível,
não sabe que é uma ópera, ignora-lhe a história, desconhece o francês que a
escreveu.
Mas
não a move como a música sozinha. No belcanto ouve estridências que não são e
lhe repugnam. Terá má vontade. Preconceito. Está armada contra ele. Contudo,
salva-lhe o canto mais saudoso. Ou o mais infeliz, talvez. São ambos suaves. Que
os agudos doem por dentro, esgatanham-lhe a cabeça até à dor física que não
pára.
Sai
zonza e apalermada para a noite, a respirar golfadas de poluição que lhe surge
purificada, o barulho do trânsito numa toada agradável. Lisboa fecha-se em casa
e recebe-a deserta de gente. Nos automóveis, pessoas ajeitadas em conforto, a
enxotar o frio da noite que a si apraz. Sorri ao passar junto a uma casa apalaçada,
a brancura translúcida de cortinas a resguardar indiscrições. Como será o
espírito de quem vive imerso nesta beleza quotidiana, que preocupações
escarafuncham a mente de tais pessoas. Pára um momento, admira-lhe a harmonia
de linhas, o bom gosto da arquitectura de pormenor, o seu ser acabado e airoso
de solar em serventia. Apetece-lhe atravessar a rua de novo, aproximar o rosto das
grades, ficar ali a espreitar-lhe um jeito familiar esquecido, um sinal de humanidade
que se lhe escape do hermetismo e garanta que não se plantou ali por magia,
caída do nada, a espantar quem a descubra. Ah! Poder investigar-lhe o sinal inequívoco
de não ser a casa encantada da floresta de betão que se esvai pela manhã. Mas,
em vez disso, mergulhou na boca escancarada do metro.
Dirá mais tarde das bodas de Fígaro, “Gostei;
já vi uma ópera”. Contudo, bem o sabe, é diacronia a não repetir.
Sem comentários:
Enviar um comentário