segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Cidades que Falam e Murmuram

                Conheci-a éramos jovens. Ou os meus olhos eram jovens e assim a olhavam. Insisto: éramos jovens. As duas. Ordenada pela cronologia, foi a minha segunda cidade. A primeira, Évora, não me seduziu para lá do período inicial, cidade antiga e provinciana, portas cerradas ao crepúsculo, submersa em invernos de frio gélido que associo a claustros varridos de vento e encerados a cieiro de sete da manhã, nós dos dedos inchando gretas sanguinolentas. Cidade onde o ar do verão queimava no rosto de homens extenuados, as pedras milenares dos monumentos escaldando agonias por pequenas fendas, suspiros de morte às três da tarde. Évora guardada por mil portas intransitáveis e proibidas, cidade onde desgostos vitais me mudaram rumo e mente. Évora-gólgota que o meu ser de polvo afasta em inconsciente força de braços.
            Depois da cidade-museu, por um daqueles acasos tristes com términus feliz, chegou-me o ar marítimo que é de rio, com seu cheiro misturado de peixe, limos e sal, pleno de vozes que arrastam erres, o cansaço de autocarros urbanos ressumando o encardido de sujidade piscatória e hormonas, agonia de narizes engomados. Caminhei-lhe as ruas, ombro a ombro com  pessoas leves e retocadas, roupas que riam mal o sol repelia névoas. Junto à linha do horizonte, em contemplação aquosa, o corpo da serra, impúdico e reclinado, nudez quase abusiva, enlanguescia. E o rio a alargar. Que dizem azul e sempre me foi verde. Mesmo a água salgada do outro lado, a saltear ondas preguiçosas, esverdeava em pupilas espantadas. Foi um amor lento, imperfeitamente perfeito. Que Setúbal mereceu. Os anos voaram sobre nós e assisti-lhe arroubos da política, fúrias futebolísticas, festas de barcos engalanados que volteavam no estuário gratos a uma Senhora invisível e protectora, brigas feias de porto e bebedeira, assaltos de esticão, drogados numa bandalheira pelos bancos, alheios a tudo, lábios e pele em aguda denúncia.
Notei-lhe a transfiguração quando, sobrecarregada de gente, foi deixando cair a juventude. Assisti-lhe a invasão de varizes nas artérias, escalavrões na arquitectura,  fundas cicatrizes talhadas por pedreiros amadores disfarçados de empreiteiro inconsciente e que ninguém parou. Democrática mas escaqueirada de alma e corpo, foi-se escangalhando, apavorada de mudança e quebra de identidade. Sobra-lhe o desgosto da beleza ausente, aberta à selvajaria e ao desleixo que lhe sujou paredes e destruíu o físico. Como qualquer ser que se preza, Setúbal rói-se da velhice prematura, da deterioração invasiva, da falta de critério no crescimento urbano. Dói-lhe a ausência do tranquilo envelhecer, a impossibilidade de transpirar a madurez de ternura que abortou e lhe poliu paciência  engastada em conformismo.  
Só o rio quase idêntico. Nele toda se debruça anelante, como noiva envelhecida aguardando barco que não volta.  É ali, no cais que se prolonga, que a cidade se imagina. E eu que sou alheia e sinto por ela uma ternura toda humana, vou desfolhando um álbum antigo onde inteira se revê. 
Mas o seu sorriso debruçado vale bem o piar de todas as gaivotas.

(continua)

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