Conheci-a
éramos jovens. Ou os meus olhos eram jovens e assim a olhavam. Insisto: éramos
jovens. As duas. Ordenada pela cronologia, foi a minha segunda cidade. A
primeira, Évora, não me seduziu para lá do período inicial, cidade antiga e
provinciana, portas cerradas ao crepúsculo, submersa em invernos de frio gélido
que associo a claustros varridos de vento e encerados a cieiro de sete da manhã,
nós dos dedos inchando gretas sanguinolentas. Cidade onde o ar do verão
queimava no rosto de homens extenuados, as pedras milenares dos monumentos
escaldando agonias por pequenas fendas, suspiros de morte às três da tarde.
Évora guardada por mil portas intransitáveis e proibidas, cidade onde desgostos
vitais me mudaram rumo e mente. Évora-gólgota que o meu ser de polvo afasta em inconsciente
força de braços.
Depois da cidade-museu, por um
daqueles acasos tristes com términus feliz, chegou-me o ar marítimo que é de rio,
com seu cheiro misturado de peixe, limos e sal, pleno de vozes que arrastam erres, o cansaço de autocarros urbanos ressumando o encardido de sujidade piscatória e
hormonas, agonia de narizes engomados. Caminhei-lhe as ruas, ombro a ombro com pessoas
leves e retocadas, roupas que riam mal o sol repelia névoas. Junto à linha
do horizonte, em contemplação aquosa, o corpo da serra, impúdico e reclinado, nudez
quase abusiva, enlanguescia. E o rio a alargar. Que dizem azul e sempre me foi
verde. Mesmo a água salgada do outro lado, a saltear ondas preguiçosas,
esverdeava em pupilas espantadas. Foi um amor lento, imperfeitamente perfeito. Que
Setúbal mereceu. Os anos voaram sobre nós e assisti-lhe arroubos da política,
fúrias futebolísticas, festas de barcos engalanados que volteavam no estuário
gratos a uma Senhora invisível e protectora, brigas feias de porto e bebedeira,
assaltos de esticão, drogados numa bandalheira pelos bancos, alheios a tudo, lábios
e pele em aguda denúncia.
Notei-lhe
a transfiguração quando, sobrecarregada de gente, foi deixando cair a juventude.
Assisti-lhe a invasão de varizes nas artérias, escalavrões na arquitectura, fundas cicatrizes talhadas por pedreiros amadores
disfarçados de empreiteiro inconsciente e que ninguém parou. Democrática mas escaqueirada
de alma e corpo, foi-se escangalhando, apavorada de mudança e quebra de
identidade. Sobra-lhe o desgosto da beleza ausente, aberta à selvajaria e ao desleixo que lhe
sujou paredes e destruíu o físico. Como qualquer ser que se preza, Setúbal rói-se
da velhice prematura, da deterioração invasiva, da falta de critério no
crescimento urbano. Dói-lhe a ausência do tranquilo envelhecer, a
impossibilidade de transpirar a madurez de ternura que abortou e lhe poliu
paciência engastada em conformismo.
Só
o rio quase idêntico. Nele toda se debruça anelante, como noiva envelhecida
aguardando barco que não volta. É ali, no
cais que se prolonga, que a cidade se imagina. E eu que sou alheia e sinto por ela
uma ternura toda humana, vou desfolhando um álbum antigo onde inteira se revê.
Mas o seu sorriso debruçado vale bem o piar de todas as gaivotas.
Mas o seu sorriso debruçado vale bem o piar de todas as gaivotas.
(continua)
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