No
meu mundo pequeno as pessoas lêem devagar, não lêem muitos livros de uma
assentada e não há disponibilidade para fazerem diferente. Nunca seremos
leitores compulsivos. A alguns de nós a vida sempre atalhou o gosto atirando-nos
motivos sem explanação, ordens impreteríveis. Penso por vezes que esta
contingência nos salva. Não acredito que livros em catadupa sejam tão
apreciados como aqueles que compramos a desejo, com data prevista de início de
leitura. É certo, saberemos menos, muito assunto não afloramos, gente que se distingue
nas letras e não chegaremos lá. Ou nem sabemos que existe. Acontece que dou por
mim num pensamento recorrente: será isso importante? Para a vida que vivemos faria
toda a diferença? Não sei. Leio com um
único motivo, prazer. Um gosto de estar atenta a um mundo outro e em que me
perco decidida a perder-me. Ficarei mais culta? Não me interessa muito, o que
pretendo mesmo é dar o salto, entrar na esfera do livro e entreter-me a fazê-la
minha. O resto, é conversa. Ou como se usa na minha terra, “um verbo de encher”.
É verdade que os livros nos fazem a cabeça. No seu conjunto, acredito que sim.
Mas também entendo quem afirma que um único livro bastaria para uma vida.
Suponho que interesse mais pensar sobre as coisas que procurar afanosamente a
diversidade do objecto de pensamento. Ler é como viajar, não se alcança a
totalidade (sempre inalcançável). E haverá decerto quem pouco viaje e
desenvolva mais o espírito nessas curtas incursões que tanta e tão diversa
gente preocupada em conhecer os quatro cantos do mundo. O segredo, julgo, está na atitude. Só um ser
desamarrado é receptivo e deixa a vida fluir. Capta o essencial sem, contudo,
pretender captá-lo. E quase tinha razão Saint-Exupéry, o essencial não pode
ver-se apenas com os olhos e nem depende sobretudo deles (o escritor afirmava
que é invisível aos olhos, o que também não é inteiramente verdade).
Depois
deste monólogo que não é do vaqueiro – nem da vaqueiro – mas podia ser, que sou
capaz de monologar sobre quase tudo que conheço, mesmo que seja só de vista,
entro, finalmente, no assunto: a leitura que andei fazendo ao diário de Jorge de
Sena. Fazendo. Isso mesmo. A meu jeito, durante muitos e enormérrimos dias. E
eu a ler Jorge de Sena só quando me apetecia que era também quando podia (a
malta como eu muitas vezes não pode, tem muita coisa extra e palerma a impedir
e nem pensa no que lhe apetece). Como só lera os Diários de Torga, para mim escrita
reflexiva de alta qualidade aqui e ali semeada de poemas, a princípio não atinei
com a indumentária do livro. Mas é que é um diário na mesma. Jorge de Sena fez
muita coisa na vida. Gastou-se em trabalho intelectual: foi poeta, crítico,
ensaísta, ficcionista, dramaturgo, tradutor e professor universitário. É natural a sua preocupação em
espartilhar o tempo pelas actividades. O seu diário é uma
resenha dos dias. Com horas, lugares, pessoas concretas, preocupações
relacionadas com a economia doméstica, um desdobrar extremo de trabalho escrito
eivado de deves e haveres, exercícios de equilibrismo para comprar novos
livros, muita música clássica, muito filme, muito teatro a entremear aflições de
trabalho e doença e esforços de noites longas para manter prazos com editoras e
jornais. E a Mécia. E as cartas para a Mécia (Mécia é a mulher, nada de ideias
patuscas). Pena que faltem ali os poemas. Porque são bons e de sobriedade
trocista, quase trágica. Sim que Jorge de Sena teve essa coragem diletante de
dizer a consumição e os males portugueses. E, tal como os nus são agradáveis à vista
se jovens, assim os poemas. Se amadurecem sobre o povo que se ama deveras e do
qual se tem saudade, aparecem-nos o dente cariado, as rugas que arrepanham a
boca a descair, o cabelo ralo, os nódulos ósseos, os defeitos de carácter que,
por gostá-lo como a um filho, não queríamos que tivesse. E isto, meus senhores,
não tem graça assim à primeira vista. Graças a Deus, Jorge de Sena nunca foi um
poeta engraçado.
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