Depois, por entre ruído de panelas e
tachos e algazarra de vozes, vi abrir-se a porta de comunicação e chegaram as
criadas de dentro, penteadas e de coifa engomada, a neve lisa do avental a
contrastar do lajedo que pisam impantes de orgulho. E levam os acepipes sem
atender ao desgrenhado de quem os fez, a olhares de esguelha e repontar ciciado
de quem na cozinha tem o seu fundo de lodo e vive mergulhado em cheiros, a
amaldiçoar os sentidos que a tudo acodem. Os sentidos que nos dão a graça da
música, a beleza da paisagem, a vibração táctil e morna de um corpo que se
quer. Mas, ali, são castigo. Trazem o fedor das fezes dos animais que morrem
sem travão, borrados de medo; o acre do sangue coalhado; o bedum que as peles
largam ainda a fumegar sobre músculos ao léu, na impudência da morte; as mãos
reticentes, a enojar de arrancar-lhes as entranhas palpitantes de calor animal,
que resistem a desocupar e só despegam sob violência de gume. E na roupa, no
corpo, esparso nos cabelos sempre presos e tapados, aquela mescla que tresanda
e já quase não sentem, mas recordam dos primeiros tempos de náusea que tirava o
apetite e carregava com força nos pesadelos nocturnos.
Mas já o franzido das saias ultrapassa a
porta de comunicação e a chave gira na fechadura. Dois mundos. Que incursões
necessárias não são mistura. Sem um cabelo fora de sítio, as criadas seguem
muito direitas, o peso dos tabuleiros em equilíbrio. Reproduzem na cozinha o comportamento de senhores que a elas
não atendem e se lhes doa a cabeça ou outra parte do corpo não lhes importa,
que nunca a dor que as aflige aflora à mente suserana.
O feudalismo social existe sem época.
Pasta na assumpção de que o chão sobre o qual cada senhor se levanta é restrito
à função e desimporta além dela: é base, serve para pôr os pés e naturalmente pisar. Vive da supremacia
do ego e do aviltamento do outro na sua consideração apenas funcional e que
cumpre os deveres para com o poder. Há uma Idade Média mental que nos
é sempre próxima e até íntima. Mudámos os objectos, mas preservámos a função.
Na parte de casa mais faustosa e reservada
à família, onde os servos só entravam para limpar ou mediante ordem expressa,
uma profusão de salas e salões mobilados. Cadeiras, mesas, loiças, candeeiros.
E a compreensão de que, ao tempo, homens a um lado, mulheres a outro. Na sala
das mulheres, a meio, um estrado – também entre as mulheres havia patamares –
onde se sentavam, em almofadas, as senhoras mais importantes. As restantes –
provavelmente as que não tinham título – faziam-no em almofadas que punham no
chão (não podiam subir ao estrado). Outra nota atentatória da época é que, ali, nenhuma mulher utilizava as cadeiras para sentar-se. No gineceu, uma ou
duas cadeiras, destinadas ao dono da casa e uma ou outra visita importante e
masculina.
Por seu lado, a sala dos homens, maior,
mais rica e mais displicente, ostenta vários centros: as mesas de jogos de
cartas, os canapés, as simples mesas de conversa e fumo. Onde mulher não entra.
E foi depois que comecei a sentir as senhoras dos Biscainhos. Muito senhoras e
cheias de si. Sentadas em amplas almofadas, ricamente personalizadas. Pobres
senhoras ricas que se enchiam de espavento da sua sala e nem uma cadeira podiam
ocupar, que gozavam garridices de almofada que as peavam como se faz com às
mulas para que não fujam. Oh! As mulheres que são tanto de Atenas, parentes
delas, suas irmãs de fado. Mas estas não o sabiam. Talvez nem conhecessem os
nomes de Esparta e Atenas.
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