quinta-feira, 28 de julho de 2016

O Homem que Viu o Infinito

Intuía as verdades matemáticas. Convicto de que lhas soprava a deusa enquanto dormia e rezava e, por isso, quase vivia no templo. Era um génio. Vinha da Índia indigente, enredado em hábitos e preceitos religiosos e vicejava arreigado nas  profundidades da crença.  Ora, para o genial não há explicação. Jeremy Irons - no filme um muito british matemático de Cambridge, tão brilhante como inconspurcado pelas virtualidades da sensibilidade - cria, ou pretende criar, o ambiente asseptico e racional onde o seu pupilo – que chama da longínqua Índia -  não desliza, não caminha, não consegue viver. Como adiante se verá. Acrescento, a história tem base real.
Para a maioria, o tema do filme, que decorre durante a primeira guerra, é a amizade matemática entre o autodidata S. Ramanujan e o eminente professor G. Hardy.  Uma narração dramática do encontro entre duas mentes geniais, de natureza e origem diversa.  O que ambos descobrem é um inédito matemático, um impossível tornado possível pela mente humana. Ou vários impossíveis. A fita deixa uma certeza: Hardy sentiu-se tocado por Ramanujan. Sentiu-se. É o termo. Que Ramanujan era de um respeito que nos lembra os intocáveis a varrer o chão que pisam e a recuar, e quase não o tocou.
Julguei antecipadamente - com preconceito, admito – que ia apreciar Jeremy Irons em todo o seu esplendor e ele salvava o que houvesse. É um actor que não decepciona. Mas Dev Patel, que já vi noutros papeis, é absoluto e cativante e a construção de personagem  é firme. Dá-nos a ingenuidade quase seráfica de Ramanujan, a segurança da mente nas suas descobertas ao mesmo tempo que o corpo descoordena inseguro pelos meandros de Cambridge, a tropeçar num mundo de homens de primeira, de segunda, terceira e mais. Patel assume Ramanujan desde a mentalidade indiana de quem é nada e tem uma deusa a protegê-lo. É disso que morre Ramanujan. De ser um génio pobre. De estar em Cambridge como qualquer popular indiano estaria: a cumprir os preceitos indianos com humildade, a não comer carne e passar fome, a não se queixar porque os pobres de bom carácter não têm queixas e se habituam a viver com o que existe. Por não haver outra maneira. Sofrem de um complexo de delicadeza. Séculos para a roda dentada da mentalidade evolver uns centímetros. Ramanujan podia comer na cantina. Podia, mas a voz das mães de tanto século não lho permitiam. Ramanujan podia queixar-se a Hardy. Não. Não poderia. Ramanujan agradecia que Hardy o tivesse visto realmente, à mercê de ingleses com má vontade, mal alimentado, sozinho, indefeso, sem um contacto da Índia, um laço forte a fazer-lhe casa. Não foi o matemático que sossobrou, esse avançou temerário, esforçado, um astro.  E alimentou-se do outro Ramanujan, cresceu a esgotá-lo, a emparedá-lo na religião que a mãe prescritiva e temerosa o impedia de violar (também perversa, mas desconfio que seja trama romântica). Contudo, tinha uma mulher que lhe sussurrou “you are my everything” numa carência tão veemente que é impossível não acreditar. E não há português que conjugue com esta expressão inglesa que não sei porquê, uma indiana sem eira nem beira utilizou. Mas, héllas, a garota não sabia escrever e foi um desastre. O mentor, que descria da intuição, deuses e sacralidades transcendentes,  interessava-se pelo método, a lucidez e a prova. Tempo demais Hardy foi cartesiano, não viu senão a mente. Inebriou-se com a dádiva como se a genialidade brotasse da terra. E apostou domá-la. Pena! Pena que tanta falha, excesso de trabalho, mau costume alimentar e falta de afecto tenham gerado a tuberculose. Pena que Ramanujan temesse o que todos os pobres temem, incomodar. Os pobres bem formados acomodam os outros, não os incomodam. E isto é lei. Na Índia ou noutro lugar.
Oh, dirão, mas Hardy deu-lhe tudo que lhe era devido, foi um amigo de excepção. Quando entendeu o problema esteve a seu lado, não o deixou morrer, levou-o ao lugar que lhe competia. Respondo: Pois. Mas foi a deusa a conceder-lhe a última vontade. A deusa deixou-o levar a morte para a Índia.

E hoje os seus cadernos estão em Cambridge. E é Fellow. Triste ironia.

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