Intuía
as verdades matemáticas. Convicto de que lhas soprava a deusa enquanto dormia e
rezava e, por isso, quase vivia no templo. Era um génio. Vinha da Índia
indigente, enredado em hábitos e preceitos religiosos e vicejava arreigado
nas profundidades da crença. Ora, para o genial não há explicação. Jeremy
Irons - no filme um muito british matemático de Cambridge, tão brilhante como
inconspurcado pelas virtualidades da sensibilidade - cria, ou pretende criar, o
ambiente asseptico e racional onde o seu pupilo – que chama da longínqua Índia
- não desliza, não caminha, não consegue
viver. Como adiante se verá. Acrescento, a história tem base real.
Para
a maioria, o tema do filme, que decorre durante a primeira guerra, é a amizade
matemática entre o autodidata S. Ramanujan e o eminente professor G. Hardy. Uma narração dramática do encontro entre duas
mentes geniais, de natureza e origem diversa. O que ambos descobrem é um inédito matemático,
um impossível tornado possível pela mente humana. Ou vários impossíveis. A fita
deixa uma certeza: Hardy sentiu-se tocado por Ramanujan. Sentiu-se. É o termo.
Que Ramanujan era de um respeito que nos lembra os intocáveis a varrer o chão
que pisam e a recuar, e quase não o tocou.
Julguei
antecipadamente - com preconceito, admito – que ia apreciar Jeremy Irons em
todo o seu esplendor e ele salvava o que houvesse. É um actor que não
decepciona. Mas Dev Patel, que já vi noutros papeis, é absoluto e cativante e a
construção de personagem é firme. Dá-nos
a ingenuidade quase seráfica de Ramanujan, a segurança da mente nas suas
descobertas ao mesmo tempo que o corpo descoordena inseguro pelos meandros de Cambridge,
a tropeçar num mundo de homens de primeira, de segunda, terceira e mais. Patel
assume Ramanujan desde a mentalidade indiana de quem é nada e tem uma deusa a
protegê-lo. É disso que morre Ramanujan. De ser um génio pobre. De estar em
Cambridge como qualquer popular indiano estaria: a cumprir os preceitos
indianos com humildade, a não comer carne e passar fome, a não se queixar porque
os pobres de bom carácter não têm queixas e se habituam a viver com o que
existe. Por não haver outra maneira. Sofrem de um complexo de delicadeza. Séculos
para a roda dentada da mentalidade evolver uns centímetros. Ramanujan podia
comer na cantina. Podia, mas a voz das mães de tanto século não lho permitiam.
Ramanujan podia queixar-se a Hardy. Não. Não poderia. Ramanujan agradecia que
Hardy o tivesse visto realmente, à mercê de ingleses com má vontade, mal
alimentado, sozinho, indefeso, sem um contacto da Índia, um laço forte a
fazer-lhe casa. Não foi o matemático que sossobrou, esse avançou temerário,
esforçado, um astro. E alimentou-se do
outro Ramanujan, cresceu a esgotá-lo, a emparedá-lo na religião que a mãe
prescritiva e temerosa o impedia de violar (também perversa, mas desconfio que
seja trama romântica). Contudo, tinha uma mulher que lhe sussurrou “you are my
everything” numa carência tão veemente que é impossível não acreditar. E não há
português que conjugue com esta expressão inglesa que não sei porquê, uma
indiana sem eira nem beira utilizou. Mas, héllas, a garota não sabia escrever e
foi um desastre. O mentor, que descria da intuição, deuses e sacralidades
transcendentes, interessava-se pelo
método, a lucidez e a prova. Tempo demais Hardy foi cartesiano, não viu senão a
mente. Inebriou-se com a dádiva como se a genialidade brotasse da terra. E
apostou domá-la. Pena! Pena que tanta falha, excesso de trabalho, mau costume
alimentar e falta de afecto tenham gerado a tuberculose. Pena que Ramanujan
temesse o que todos os pobres temem, incomodar. Os pobres bem formados acomodam
os outros, não os incomodam. E isto é lei. Na Índia ou noutro lugar.
Oh,
dirão, mas Hardy deu-lhe tudo que lhe era devido, foi um amigo de excepção. Quando
entendeu o problema esteve a seu lado, não o deixou morrer, levou-o ao lugar
que lhe competia. Respondo: Pois. Mas foi a deusa a conceder-lhe a última
vontade. A deusa deixou-o levar a morte para a Índia.
E
hoje os seus cadernos estão em Cambridge. E é Fellow. Triste ironia.
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