quarta-feira, 6 de julho de 2016

Palácio dos Biscainhos

E são felizes passeando. Existem sob a seda tufada que cinge e roçaga cinturas de vespa, esmagadas por acintosos espartilhos, o colo um aparador exuberante que insta apetites manuais e disfarça na redonda maciez o mau estar de pequenos flactos nascidos da compressão que estreita a contragosto. Sente-se-lhes o corpo numa exalação, mas que aperto, não respiro. Em passo pequeno e ponderado, engaioladas no traje, luzem boculismo elegante e deambulam em palidez de cera que insinua no romantismo do jardim.
O jardim. Longo e airoso, é ajuste de bom gosto,  espaço verde que se demarca em distinção de patamares. Os olhos correm fontes e gradeamentos, estátuas românticas e esconderijos de amor ou tão só extenso sossego de repouso simples, a solidão a namorar a frescura nublada. Nele passeiam sonhos e desgostos tão de sempre. Quem sabe, algumas mulheres ali aprendem a ler, conhecem os primeiros romances que lhes moldam o longe imaginário. Ali enrubescem as meninas nos galanteios de alguma visita masculina, um amigo do irmão, um secretário do papá que, momentâneo,  esquece a condição. Lá, junto ao final do jardim, naquela árvore centenária que toda se debruça de ramos, escondidas, choram desditas inconfessáveis e quem sabe, o pensamento se lhes deteve preso de enleios apenas entrevistos. Que, aos felizes na clausura de tudo terem sem nada procurarem, escapa muita vida. São senhoras de sua casa e muito haver, têm capela e confessor privados. Mulheres felizes em gaiola dourada que as prende e demora do mundo. Felizes porque as carruagens não as deixam na porta de casa, mas dentro dela (o corredor da entrada mereceu pavimento próprio e ondulado a fim dos cavalos não escorregarem). Oh dourada felicidade que, hoje, ninguém anseia.
Quem terão sido estas doces mulheres de Atenas, esperando seus maridos e pais e manos na abastança faustosa do seu poleiro que não empoleira.  E os homens, o que os moveu para assim as fazerem tão perto e tão longe de Braga-cidade. Talvez o impulso de amor que protege e a todo o capricho e gosto quer satisfazer. Ou a mediocridade da posse, do ciúme virulento, o hábito do preconceito de segundo sexo que é menos e sub. Queria julgar que é engano, mania de sujeito feminino e ressabiado, mas tudo no palácio aponta a última hipótese. Que não eram mais felizes as moças da cozinha, puxadas à pressa para uma moita, sujeitas à bruteza de um corpo mais forte, submissas ao prazer dos homens, a servi-los na cama, mesa e roupa lavada. Senhor ou simples vilão. Mas o gesto não morre. Repete-se sob outra forma. No meio da folhagem idílica eu a lembrar a serenidade azul no olhar de uma velhota de maltratada vida marital, por que casou com ele, tia Anunciada. E ela, eu nunca o namorei e nem o conhecia, um dia a minha mãe obrigou-me a ir à fonte sozinha, ele saltou-me ao caminho, agarrou-me e olhe, foi mesmo ali e fiquei logo grávida. – e com fatalismo realista - Se não passasse eu, era outra. Calhou-me a mim. E eu, e depois?. Ela, depois, o meu pai apontou-lhe a caçadeira e teve de casar comigo. Passou-se isto em meados do século XX. Espero que não para sempre, mas a herança social é nebulosa, faz perigar a navegação.
Contudo, é um palácio tão bonito! Os jantares refinavam em loiça, talheres e beleza gulosa dos alimentos. Que mulheres os presidiam, não sabemos. Quais se atafulhavam para esquecer. Quais sorriam por temor. Quais urdiam suas teias. Não sabemos. Mas viveram ali, escolheram as loiças, os talheres de prata, o linho dos guardanapos, as cores da mesa. Encomendaram os charutos, supervisionaram os arranjos de flores, os uniformes dos criados, a sala e o arranjo das crianças. Tiveram os filhos em casa e dormiram sozinhas em quartos que os maridos procuravam nos calores exasperados do sexo. E não se misturaram com quem desautorizava o estrado. Aquelas damas viveram em perpétua pirâmide social, a reproduzir contrastes sofridos.

E, ainda assim, o palácio é lindo. Entra-nos um aconchego de alma se lhe percorremos a realidade de casa e jardim. E, no remanso do pátio interior, uma glicínia voraz enlaça na pedra sôfrega, recobre-a, desmancha-se em cachos violeta-rosados que penduram elegância de gestos em bailarina grácil. Talvez a alma das mulheres nela se sustente e seja. Perpétua. Quem sabe...

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