quarta-feira, 28 de setembro de 2016

É Tudo Vida

Por vezes, encho-me de coragem e dou uma volta em tua casa a espantar teias de aranha e lixos, esconjuro bolores e fungos, passo-te a vida a pano. Não agradeces, julgas a excomunhão de cheiro ruim um apêndice da minha natureza. Na tua vida apareço de pano na mão e garrafão de lixívia a tiracolo e tão depressa estou a abrir janelas como a invadir cantos escusos onde o pó coagula. Talvez eu seja só ou sobretudo isso: duas mãos em demanda. Passam anos e o ritual repete-se: primeiro a limpeza, depois a mudança que me senta à máquina de costura a fingir que sei coser. E depois melhoras e enxotas-me, queres-me de visita como dantes, sem interferências no fogão ou rebuliço nos pertences.  As minhas visitas espaçam e, aos poucos, a casa vai encostando a quem foi. Até serem uma. Então, as minhas mãos, doídas dos cheiros que te rodeiam, porfiam de novo em afugentá-los. Qual de nós desiste primeiro deste ciclo, não sabemos. Mas gastamo-nos em cada vez. A consumição é a paga de viver.
Desembaraço-me em espaços comuns, mas hesito no quarto, abro-te armários a medo, como quem devassa. Calças, pijamas, camisas, casacos.  Tudo te espera. No incómodo das minhas mãos, a recuarem do meu olhar. Compras roupa para 200 anos, tu. Mas o que me salta ao caminho, a chamar-me lá dos fundos, é o saco preto da mãe. Empoeirado e fora de tom no reino masculino. Pobre saco de plástico, imitação da mala que a vida não me deixou dar. Abro-o. Os postais de aniversário e dia da mãe que enviei; e até alguns que lhe comprei por achá-los bonitos. As cartas que continuei a escrever  e violaste sem cerimónia e, quem sabe, só te entristeceram. Sento-me devagar a sentir-lhes o gosto de saudade naif e ridícula. A um sopro de vento, um cicio displicente das tuas camisas que oscilam de manga vincada, não leias; as calças de ganga a azular, passou; os casacos à beira de uso, deita fora; as naftalinas pérfidas, aterra, some com isso tudo. E as minhas mãos ásperas de cloro, correndo o papel onde outras mãos pousaram, olhos atentos a letras que já foram lidas, a mente a mostrar-me pálpebras de larga comoção. Então, quase contente, fito o interior do armário e respondo: tudo foi tão pouco! Mas valeu a pena, sim.

Depois, retiro e guardo o tesouro que me pertence. E quando o saco retoma lugar, a roupa perfila em silêncio de geometria abstracta. Já a encostar a porta, mesmo à beirinha da fechadura, um cinto dependurado no varão abana a fivela e murmura aliviado, talvez tenhas razão.

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