sexta-feira, 14 de julho de 2017

No Tempo da Escola

A frequência e novidade da escola nublou-me os amigos de tanta hora. Vivia em adaptação sistémica, cercada de horários e  desábito, e assoberbava de livros e matérias escolares. Inda o sol criança e já D. Amélia encarrapitava nos saltos altos e, toda pastas e dossiers no banco traseiro, me abria a porta lateral do automóvel. Vaidosa da boleia, sentava-me a aspirar os eflúvios perfumados que desprendia, sempre cuidando que os meus pés em eterno veraneio - sapatos de verão eram mais baratos que botas de inverno - não sujassem de pó o automóvel, avisos maternos às marteladas na minha atenção, vê lá onde pões os pés, não sujes o tapete. Seguíamos em silêncio. Eu, desinteressada de toda a ciência exacta, a desenvolver composições mentais ou rememorar verbos e regras de sintaxe e morfologia; ela, compenetrada, olhando em frente. Duas ruas antes do colégio, num lugar de muros bisbilhotados por copas de árvore, o carro imobilizava. Depois do obrigada da praxe, apressava-me a sair. Puxava o atilho do portão de zinco ondulado e, mal o empurrava, o carro desaparecia. Mala ao ombro, solas ecoando no deserto do quintal, abria uma porta de postigo vidrado e dava de caras com o ar morno da cozinha, um aroma de leite com chocolate a insinuar. A empregadita assomada à porta dos quartos espreitava-me do alto do avental e apontava Madalena num sorriso de troça habituada e dedo estendido. Sob o enleio de espargo que dava volta à cozinha,  a minha nova amiga emoldurava em begónias. Sentada à mesa, moía a má vontade dos maxilares no pão que eu avaliava de apetite e que ela, em aperreio de dedos fatigados, depositava mordiscado em meias luas no pratinho pequeno, um nico de queijo a descair. E a mãe a olhar-me como se eu uma autoridade na matéria e não da mesma idade, já viste que esta menina não come como deve ser – e depois virando-se, bebe ao menos o leite, filha.  E enquanto lhe vestia a bata, eu, sem hábito de interruptores e candeeiros eléctricos, corria às cegas o escuro do corredor, embrenhava no cheiro a cama e suor e adivinhava o trinco.  Cá fora, respirava fundo e relanceava a cega sentada no banquinho de parede, a bengala à mão direita, siamesa das pernas a florir, Bom Dia! E ela a compor a pose, sorriso debruçado, a visão na ponta dos  dedos que emparelhavam chinelos com pés. Depois endireitava-se a confirmar a tira da caixa das esmolas. Maravilhada, seguia-lhe a ternura táctil e comovente das falanges adesivadas à ranhura, como que a festejá-la. Em seguida, agitava a caixa vazia e pestanejando à velocidade dos cegos, ainda não passou ninguém, és a primeira;  olá, já sabia que vinhas, conheço-te os passos ainda dentro de casa. E a passar-me uma mão amiga no cabelo que seguia leve no deslavado da bata, estás bonita. Ríamos. E  até Madalena aparecer, contávamos notícias uma à outra. Havendo tempo, falava-lhe da viagem de carro, da tristeza de burros e cavalos trotando a estalo de chicote, dos ciclistas esforçados que impavam nas subidas, das camionetas ajoujadas de toros e cortiça, o excesso de carga em perigo danger e que entortava nas curvas; e a mestria de D. Amélia a ultrapassá-las.  Ela ensinava-me os cheiros e ruídos que lhe acompanhavam as horas, dizia-me que não existe apenas o cheiro de cada um; e pestanejava a garantir que os cheiros de lugares, trabalhos e tarefas é pegadiço, se mistura na pele e nas roupas, nos delacta. E eu em admiração ao poder do olfacto e do que ela sabia das pessoas só de ouvido nariz e pele. Mas o seu tema  era a figura de D. Amélia: o que vestia, a que cheirava, como se penteava e pintava, os seus humores...Enfim, Madalena surgia seguida da empregada que sobraçava os livros apertando sobre eles o elástico da capa de pele. Depois passava-os a  compor-lhe as tranças, dávamos um até logo  às duas e algaraviávamos rumo à escola.

No agrado deste quotidiano, breve se fez Dezembro. Ruas de pó varridas de vento, os olhos vagos das crianças acompanhando um arbusto receptáculo de lixo, às cabeçadas aqui e ali, rebolando até uma esquina onde pausava momentâneo para continuar viagem em voo baixo, rente ao chão. A garotagem, leve de roupas e agasalho, arrepiava no rijo da nortada.  Em todas as casas se queimava o que havia e à boca da noite as ruas cheiravam a lume e, com ou sem chaminé, o fumo escapava-se dos telhados de telha vã. Depois da escola, a criançada catava os pinhais e trazia tudo que encontrava, sacos de caruma, pinhas esquecidas e doentes, pequenos galhos caídos enfeixados e carregados à cabeça, uma mão a amparar o feixe, a outra arrastando o saco de caruma. De regresso a casa, via-os pelo vidro. Peregrinavam na beira da via férrea, cabeças a oscilar de esforço, os irmãos mais novos correndo atrás ou na frente. E tudo me parecia longe e diverso. Uma tarde, por entre a fila de garotos,  vi Lídia.  Disse-lhe um adeus efusivo mas, lançando mãos à cabeça a equilibrar a carga, virou-me a cara. Por certo invejava o meu conforto automóvel. Que tonta. Em Luís, antes meu vizinho de todas as horas e que agora nunca via, deixei de pensar. 

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