Rever
Chico Buarque depois de mais de uma década. Embevecer no superior carinho
português, uma desmesurada ovação a envolvê-lo mal pisa o palco. Ser o ar lançado nos assobios,
o ímpeto das mãos, a garganta presa de vê-lo contente e comovido de e com o
público. O espectáculo inteiro foi reencontro carinhoso, um esvanecer de
saudade desvanecida. Homenagem do Chico ao povo português e a recíproca e
apoteótica rendição expressa em aplausos, bravos e inesgotável estridência de
assobios a repetir e repetir em cada canção, em cada frase e pequeno aparte. Não posso saber como foi no Porto, ou
mesmo em Lisboa nos dias que se seguiram. Mas tenho certeza absoluta que, em
qualquer parte do mundo, Chico não terá melhor público. Tudo ou quase tudo foi
cantado a meias e assobiado e aplaudido mal as canções eram identificadas. E o
carinho português é o de quem o viu crescer na música e na vida, lhe acompanhou
juventude e madureza e se prolonga na velhice. Esse carinho particular é a
supervitamina que o sustenta e faz portugueses como eu esquecer o preço de duas
horas de encanto. Deixámos de ser
eternos. Agora, cada vez é única e pode ser a última. Li algures que existem as
noivas de Chico Buarque. Jamais me senti noiva do Chico. Estou com todos os que
não lhe conhecem apenas a figura magra e quase estilizada, a unicidade dos
olhos, o rosto vivido de eterno menino tímido e bem comportado. Mais além,
brilha a sua inteireza e convicções, a ternura familiar que sugere sem exibir,
o jeito terno e quase plano de sempre cantar o amor, a humanidade rasa das
histórias que escreve e canta. Este não me pareceu o seu melhor álbum. Voz e
figura ganharam uma nota melancólica, espécie de fatalismo que quase nos
entristece, como se a poesia voe tão perto do chão que possa sumir-se nele. E,
contudo, sou-lhe grata pelos versos da primeira canção que foi também a última,"Vem esquecer tua tristeza / Mentindo à natureza / Sorrindo à tua dor." Era para isso
que estávamos ali, para enganar a natureza. Com ele, conseguimos. Depois,
moveu-me canção mais intimista, abrindo portas ao que, de outro modo, não
descerra, “deve haver um confuso casarão onde os sonhos serão reais/ e a vida
não/uma espécie de bazar/ onde os sonhos extraviados vão parar”. O sonho
extraviado que permanece nesse tão nosso e confuso casarão e que ainda assim
nos alumia. E depois houve Todo o sentimento e nele, “o
tempo da delicadeza”, um desligar para voltar a ligar que se assemelha demais
ao sentir que perpassa em Tua cantiga, qualquer coisa de
irracional que acorre a um suspiro, ao aceno de um lenço caído, a um nome com
cheiro de perfume; canção que parece tão súbtil e leve, mas tanto apela a uma
força desordeira. Tudo banhado em simplicidade. Como sempre. E houve Tua cantiga, feita para amores
supremos e só não entende isto quem sofre de séria parvoíce. Há quem escreva
que Chico simboliza o amante delicado e ideal. É verdade, ele também canta o
amor, sim. Ao longo da vida, sempre guardou o lugar de cantá-lo. Digo eu que
tem vindo a desenhá-lo nos vários estados, sólido, líquido e gasoso.
Obrigada, Chico.
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