Morreu
a minha última avó. Foi uma avó de coração, que sangue comum não nos existe.
Não era uma velhota bonita e tinha voz ligeramente áspera, mas olhava todos com
bondade. De longe em longe, tropegava ao amparo da bengala, olhos espargindo
saudade na difícil romaria de meia volta em redor da casa florida. Uma
odisseia.
Em
tempos, corriam crianças pelos cantos da casa, no jardim, junto às redes de
rolas, pombos, galinhas e canários. Ou em curtas escapadelas pelos regos da
horta. Ali abrigou filhos, netos, bisnetas. E mais crianças que criou desde o berço, em desvelo de ama benfazeja. Agora acorriam-lhe
aos pés duas cadelitas sôfregas, esfalfando ladridos desalmados à proximidade de
qualquer. A osteoporose prendia-a por todos os lados e a frequência das quedas
compadecia em fundas cicatrizes espalhadas por braços e pernas revelando padecimento
hospitalar. E ainda assim vivia em sua casa, arrastando-se de um lado a outro,
os animais por companhia. Visitei-a menos do que devia apesar de morar no fim
da rua, a escassa meia dúzia de metros. A gritaria das cadelas incomodava-me. E
quanta vez lhe perguntei se não lhe impediam
os movimentos. Mas eram a sua
única companhia, a família aparecia no fim do dia de trabalho.
Foi
assim até ao dia em que tropeçou numa - ou nas duas - e entornou a chaleira fervente
sobre o corpo. E ali ficou caída, horas e mais horas em urgente sofrimento, até
que a tardinha lhe trouxe a filha. E depois o lar de idosos. E logo, logo, a
morte.
Guardava
para mim uma flor vermelha que não chegou, acabidada por filhas ou netas. Mas
as rosas do muro, essas, foi ela que,
anos atrás, as deixou ao entrar da
porta. E cresceram. E quase por milagre, parece ter ressuscitado a última
árvore que o marido plantou às vésperas da morte. De cada vez que a visitava
vinha a pergunta, como é que ela está, ele dizia que não se aguentava, que estava
quase morta.... E eu mentia, está linda, pegadíssima.
E
um dia, avó, encontro-a nas ruas da eternidade, a nossa flor vermelha no braço
sem cicatizes, bom de todo, tome lá minha neta.
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