domingo, 17 de junho de 2018

Requiem para uma Flor


Morreu a minha última avó. Foi uma avó de coração, que sangue comum não nos existe. Não era uma velhota bonita e tinha voz ligeramente áspera, mas olhava todos com bondade. De longe em longe, tropegava ao amparo da bengala, olhos espargindo saudade na difícil romaria de meia volta em redor da casa florida. Uma odisseia.
Em tempos, corriam crianças pelos cantos da casa, no jardim, junto às redes de rolas, pombos, galinhas e canários. Ou em curtas escapadelas pelos regos da horta. Ali abrigou filhos, netos, bisnetas. E mais crianças que criou desde o berço, em desvelo de  ama benfazeja. Agora acorriam-lhe aos pés duas cadelitas sôfregas, esfalfando ladridos desalmados à proximidade de qualquer. A osteoporose prendia-a por todos os lados e a frequência das quedas compadecia em fundas cicatrizes espalhadas por braços e pernas revelando padecimento hospitalar. E ainda assim vivia em sua casa, arrastando-se de um lado a outro, os animais por companhia. Visitei-a menos do que devia apesar de morar no fim da rua, a escassa meia dúzia de metros. A gritaria das cadelas incomodava-me. E quanta vez lhe perguntei se não lhe impediam  os movimentos. Mas  eram a sua única companhia, a família aparecia no fim do dia de trabalho.
Foi assim até ao dia em que tropeçou numa - ou nas duas - e entornou a chaleira fervente sobre o corpo. E ali ficou caída, horas e mais horas em urgente sofrimento, até que a tardinha lhe trouxe a filha. E depois o lar de idosos. E logo, logo, a morte.  
Guardava para mim uma flor vermelha que não chegou, acabidada por filhas ou netas. Mas as rosas do muro, essas,  foi ela que, anos atrás,  as deixou ao entrar da porta. E cresceram. E quase por milagre, parece ter ressuscitado a última árvore que o marido plantou às vésperas da morte. De cada vez que a visitava vinha a pergunta, como é que ela está, ele dizia que não se aguentava, que estava quase morta.... E eu mentia, está linda, pegadíssima.
E um dia, avó, encontro-a nas ruas da eternidade, a nossa flor vermelha no braço sem cicatizes, bom de todo, tome lá minha neta.  


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