Já
escrevi de tudo sobre a água e a nossa relação. Mas escrevo de novo. Para
repetir o prazer de falar dela. Da água. Amor sem tempo ou idade, isento de
quebra ou tracejado.
Infância
Como
em todas as relações de crescer, começámos com certa cerimónia. Do meu lado,
respeito. Olhava-a de olhos baixos, um fascínio medroso e incrédulo a
interrogar o breu espelhado do fundo dos poços, se eu caísse deixavas-me morrer.
Por resposta, só o eco atordoado dos meus gritos. Depois havia a água bebível,
carregada à cabeça em bilhas de barro içadas a pulso, e usada em economia de
gastos. O agrado de saciar a sede deu-lhe primazia, ainda é a minha bebida
preferida. E a água do banho, aquecida a lume de chão, duas panelas de ferro a
borbulhar. Sempre o mesmo cuidado, água é líquido digno de valor e estima. E a
praia que mal vi e logo o mar apagou tudo naquela excursão de garotos cuja
finalidade era outra. Eternidade na solene meia hora de fascínio estival. É
possível que a lembre mais e melhor que os intervenientes directos. Depois,
havia a água encanada a regar as laranjeiras e que, se desencanava, era botão a
desatar a histeria possessa e asneirenta de meu pai, bem mais precioso que
topázios jorrando lapidados da abertura do cano. No tanque comum de lavar
roupa, preocupava-me assistir à transmutação da água que passava de líquido
fresco e transparente onde as mãos apeteciam e as peças boiavam, a uma espessa
e inexplicável camada cinzenta que guardava no fundo não se sabe o quê, e
causava repelência. Os outros garotos a apararem a nata cinzenta, mexe!, e eu a
recuar, mãos fugindo para as costas. E havia a chuva forte que batia no barro
das telhas a respingar-nos, minha mãe correndo a proteger as camas com um
plástico e eu temerosa do desastre, e se as parte.
Desconhecia lagos e represas, rios, regatos,
barragens. Fustigava-me a curiosidade uma fonte humilde que gorgolejava
baixinho no meio de pinheiros, em doloroso desperdício que enterrava no
pó castanho por entre carumas aprendizas de natação. Brotava do quadrado escuro
de pequena cisterna a que chamávamos a nascente, e onde as cobras de água da
nossa crença eram mais largas e compridas que braço de adulto. Puro terror
jamais vislumbrado no embevecido caminho do cabelito de água a empoçar. Por mim, era habitada por fadas, local de
encontro de príncipes e princesas, assistente nocturna de maquinações diabólicas
de lobisomens, talvez as cobras metidas ao barulho.
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