quinta-feira, 21 de março de 2013

E Se Deus Há...



O pensar adolescente é feroz. Alarga-se num mar de inocência que falha a justiça e salta sobre males quotidianos, como se o mundo um deserto apenas povoado dos sonhos e verdades que planta e faz florescer. Floresta intrincada de si sozinho, impõe-se a proliferar no grande de si mesmo, cego para o mais. Por isso, tudo me parecia fácil. A hipótese de que a Bernardette na minha terra, que não passa de um lugar e perde para qualquer aldeia, bastava-me; garantia-me que a iriamos receber.
A satisfação que me possuía arredou ses. Descontei a evidência da doença. Desviei o macilento grave da minha mãe que mirrava diária, à força de quase tudo deitar fora, o inchaço de uma perna a arrastar. Os médicos no IPO, a senhora não precisa voltar, agora vai ao seu médico. E ela sozinha no encapelado da doença, mas não estou curada, sinto-me cada vez pior; eles em pressas de pena, talvez, não podemos fazer mais nada por si. Ela e a doença. As duas. Perdidas nas ruas de Lisboa. A olhar para onde. Pedindo o quê. O pensamento dela, de certeza, os meus filhos.
Mas ultrapassei  tudo isto e não me assaltou a lembrança da tosse persistente a desfazer-lhe a vontade e roubar-nos o sono, eu a prometer impossíveis de terços diários e até a temida consagração religiosa. Noites e noites a elevar a fasquia das promessas à medida da tristeza em desesperança. A contar horas e meias horas no relógio da sala, enquanto a sistematicidade da tosse, imune a remédios e mezinhas, a arrancava de si mesma. A tosse  que rematava o trabalho do cancro e escavava no corpo as suas crateras, as minhas pálpebras a incharem sem préstimo. Mas um Deus barreira. Em rejeição determinada. Que nada quis do que ofereci e nem sequer me tomou quando propus a troca.
Talvez eu tenha querido esquecer essa aflição de loucura. Ou apenas uma vitória da idade, bandeira a agitar, estou aqui, existo. Quem sabe… Obliterei tudo: a nossa casa quase despida; o não termos maneira de alimentar tanta gente; a ausência de lugar para deitá-los; a minha doce mãe a quem já um tão excessivo no quotidiano.
                E talvez que um Deus compassivo. Na manhã seguinte, a mãe do meu primo, nossa tia preferida, chegou inesperada; uns dias connosco e com o filho. A minha tia era alegre, trabalhadeira de maneira e feitio, e, nas horas de calor, o ar a tremer, enquanto nós espapaçados no poial da rua, à sombra quente da casa, ela corria ao tanque de rega a encher baldes de água que deitava no cimento do quintal. Se eu, só a mexer a boca, o suor a alagar, tia, isso para que é? Ela atirava a água com raiva, uma nuvem de calor a exalar da fervura no cimento, sei lá filha, não posso estar quieta, ainda me faz mais calor. As visitas   da minha tia passavam em alegria. Fazia-nos surpresas doces e refeições novas, cozinheira de mão cheia que era. Pelo meio dos dias, entremeava gargalhadas em histórias de gente desconhecida com vida díspar, num país que lhe vinha na voz e nos soava bem melhor que Portugal. E nunca um lamento do aperto de saudade que o longe do filho lhe trazia. Nunca uma lágrima pela submissão de vida toda. Não sei se a minha tia era alta, mas era mulher de encher lugares. Contudo, não encheu o coração do único homem que gostou. O meu pai não distinguia o meu primo dos filhos e gostava da cunhada; e ela estar ali desfazia-nos os nós. Porém, dessa vez, a minha tia séria e pensativa em ocasiões muitas.
                A mãe queria dar-me o gosto de conhecer a francesa; mas não sabia nem tinha saúde para pensar no como de bem receber. E logo dividiu com a irmã. Num ápice, ela alisou refegos preocupados, planeou refeições e deitou cálculo a doces que faria com os ovos que tínhamos na capoeira mais os que viriam. Mal destinou o jantar dos franceses para o dia seguinte, tratámos do almoço. Sob a sua batuta, decidiu-se o que fazer durante a tarde e repartimos funções: a minha mãe matava e arranjava a criação; eu limpava a sala e faria um bolo. Os meus irmãos e os meus primos iam aos pinhões, ou seja às pinhas, com que a tia adoçaria os franceses; ela ia escrever a lista de necessidades da mercearia e tratava das carnes. Unidas neste conluio, serenámos; e a mãe quase contente.
Os meus primos (a filha de uma outra tia que vivia no monte, quis acompanhar) e os meus irmãos, imediatamente a seguir ao almoço, foram para o pinhal, contentes e livres. Entretanto, comecei a limpeza enquanto a minha tia listava compras num monólogo  de substituir ingredientes quando nós, não há; ou, também não há. E a minha mãe, gaveta dos talheres aberta, entretinha-se a verificar o agudo das facas, a fim de minorar a agonia dos pobres galináceos.
                E, de repente, uma batida apressada no vidro da janela da cozinha. Viemos a correr e afastámos a cortina. Uma outra vizinha do monte, ar abismado, o rosto no completo do vidro, olhos escancarados de admiração como se ali marcianos
- Ó Vizinha, vêem aí os franceses!
Olhámos umas para as outras, a vizinha dentro do circuito. A minha mãe, faca na mão, embasbacada. Eu olhei a estrada e vi um carro muito comprido, com uma roulotte atrelada, a entrar no portão que não havia. E no meio do estupor que nos pregava ao chão, murmurei estupidificada
- São mesmo eles, mas era só amanhã à tarde...
E o rosto da vizinha ainda a encher a janela, uns olhos desmedidos.

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