domingo, 17 de março de 2013

O Tempo das Musas



Por vezes escolho um espectáculo só porque sim. Sem pesquisa ou inquietação. Aposto. Um feeling. Vou, não sabendo bem a quê. Atrás de uma intuição. Talvez por isso, depois, o agrado mais redondo. A música clássica é uma descoberta recente, desuso-lhe a confiança, leiga de grau um. Inaugurar a Primavera com um concerto. Mas nestes dias ininterruptos de bolor, humidade e más notícias, antecipá-la pareceu-me melhor. Pela mão de Ludwig van Beethoven. Comprei o bilhete reparando que além da Orquestra Gulbenkian, o Coro. Pareceu-me boa ideia. E foi todo o meu saber.
Ontem, cheguei sobre a hora e sentei-me esbaforida e satisfeita. Tirei os óculos e, na minha frente, cabeças com horas de pente. Havia no ar um leve cheiro a guardado, mas podia ser da sala ou uma réstia de perfume, que as senhoras fazem gosto em aromas de estranhar. E, de imediato, ainda a limpar as lentes, eis que o palco uma enchente em fileiras. Gostei que na orquestra e no coro gente em flor. E cada instrumento em descanso tinha um modo tão  de pertencer e cuidar, como mãe que dá a mão ao filho e mesmo distraída a não desprende. A discreta elegância nas mulheres de costas direitas, perfis suaves, contrapunha-se à contenção dos homens, apertados em cerimónia, as pernas,quero esticar. E eles, não, não, não. Durante os aplausos, admirei as árvores lá atrás, contente de uma tal sala em que o pano de fundo é natureza. Grata porque eu ali. Lembro-me de ter pensado que um concerto assim seria uma prenda de dar. E antes da tristeza, ao mesmo tempo que música e vozes tomavam posse, um pássaro branco ascendeu a voar em diagonal. E tomei como sinal. Sim. Não lembro mais nada exterior. Deixei de ver as cabeças à minha frente, de sentir a pasta que tinha no colo; a dada altura pus a mão e a cara molhada. E daí a bocadinho as pessoas batiam palmas e tinha terminado. Fiz como elas. Enquanto saía, uma senhora comentava nas minhas costas, é a missa de Beethoven, não podia perder.
Garanto: a missa em dó maior de Beethoven é um extraordinário.
Cá fora, o mundo, as horas aos gritos, o ruído do trânsito. Ainda eu  flutuocaminhava, a habituar as pernas ao de todas as horas, quando fui ultrapassada por uma garota ligeira, caixa a tiracolo, quem sabe um violino dentro, num tão normal de qualquer pessoa. Olhei-a. A pressa de chegar ia-lhe no corpo, olhos fixos, rabo de cavalo a um lado e a outro, pernas de rapidez. Iria jantar, queria um cinema, tinha alguém a esperá-la. Para mim, ela era parte da missa de Beethoven. Para quem a esperava, Beethoven é profissão. Que ela sim, importante.

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