segunda-feira, 4 de março de 2013

"360"


Em garota imaginava que as coisas aconteciam porque um Deus as fazia acontecer. Só para mim. Acompanhava-me a íntima convicção de não saber adorar nem a Deus nem a nada - o  que me ralava bastante, porque, cartesiana inesperada, julgava ser a única pessoa incapaz de tal sentimento, por desconhecer  queixas deste teor (ainda hoje não as conheço). E fenecia-me a coragem para me informar de observâncias próprias à adoração, sentimento sublime de que excluía obviamente o meu pai que falava demasiado alto, se entusiasmava na gritaria e tinha irritações espumosas, o corpo a sobressair voracidades; faltava-lhe pendant. Nem ele nem eu chegávamos perto da elevação subjugada, do anular completo e de tapete que o sentimento exigia. Mea culpa por nós dois.
Ao jeito de marteladas na cabeça, o tempo foi-me modificando a ideia de existir um Deus atento aos meus pormenores, que, para além do mais, governasse o mundo inteiro e os escaninhos de toda a outra gente. Mesmo sendo Deus, Omnipotente, Omnipresente e etc, era missão impossível. O final da adolescência trouxe-me estas questões que chegaram cinzentas à juventude; em pousio. Até que, na maturidade, um dia que pensei nisso, entendi que tudo está ligado na vida dos homens (não garanto que seja verdade). Que as minhas sortes são, bastas vezes, azares de outros. Que, sempre que escolho, não me escolho apenas a mim, interfiro, de acordo com o peso da escolha, na vida de outrem. E que, ainda que o não deseje, pode acontecer que seja para eles negativo o que para mim é um bem. Ou seja, as minhas certezas de decisão são azares do destino e acasos de muita gente ou pelo menos alguma. E o inverso. Chegar a esta relativização generalizada, onde o dedinho de Deus já não me apontava a toda a hora, não me deixou melhor do que compreender que sou incapaz de adorar. Mas situou-me.
E se Deus não houver? Pois é. Pode não haver. Essa é a resposta que cada um tem de procurar, sem nunca sair da pergunta. Que religião não é descanso. Move-me a este monólogo o filme que vi hoje, “360”. Não é um grande filme, apesar de recheado de bons e até bonitos actores. Acredito que o realizador pense, ou tenha pensado à época, um pouco como eu acerca de destino, decisões e acasos. Porque, o que nos parece de início uma panóplia de pessoas com histórias desligadas termina a encadear. Pouca gente fica fora da zona de influência da relação. A ideia central é a de um sábio anónimo, que desconfio nem existiu, cuja descoberta é que, nas bifurcações que a vida nos apresenta, temos de optar. É de rir, este sábio. Porque a vida tem caminhos não necessariamente bifurcados, há-os circulares, onde a máxima grega de que o círculo é a figura perfeita, soçobra. E a escolha não existe entre dois; dois é, tão só, número mínimo para que possa acontecer. O ser humano é bem mais criativo nos caminhos que encontra e nas opções que faz. Todo o filme sublinha o desencontro entre as pessoas. E o sexo surge, sem novidade, no foco. Como factor de desencontro e desencontro em si mesmo. Ou, se se quiser, há o desencontro dos praticantes e os desencontros colaterais. E os incompreensíveis de cada um a procurar nele alguma coisa. Julgo eu.
 360 graus é muito grau, um ângulo giro. Assim o filme “360”: demasiada gente a passar demasiado depressa. A personagem com que simpatizei, acabada de sair de uma prisão onde permanecera seis anos por crime de violência sexual (já não tenho certeza absoluta), faz um papelão: uma garota que volta a casa em revés de sexo e amores, numa noite extra de aeroporto e bebedeira de esquecimento, resolve apostar no acaso; o meu personagem surge-lhe como o bom acaso. Não acredito que alguém como ele, com tara de violência sexual e após seis anos de abstinência (a tara dele visava as mulheres e a prisão era masculina), uma garota simpática e bêbeda a oferecer-se…consiga mudar para anjo da guarda (ainda que à custa de sangue suor e lágrimas). Não posso crer. Mas foi o meu personagem. Também pelo incrível. Ficou-me no entanto um acaso muito comum. No aeroporto, ele procurara uma mesa vazia para se isolar, receava-se da noite entre tanta mulher. E ela veio sentar-se, casualmente, nessa mesa. Foi mal recebida, mas não foi embora e interpretou tudo ao contrário, achou-o bem quando ele estava a entrar em crise. Não me interessam muito as lições de moral. Gostei da ternura do gesto dele quando, depois de uma crise severa na casa de banho, reentrou no quarto e lhe passou a mão no cabelo adormecido; um gesto de que ela nunca soube. Desconheceu a razão por que  ele saiu; que voltou a entrar e ficou a vê-la dormir; não lhe sentiu o leve da mão. 
Aquele homem esvaneceu.
Como as pessoas são tão outras do que as pensamos.




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