sábado, 24 de setembro de 2016

O barro de que somos feitos

Os olhos são bandeirantes que sobem e descem na paisagem a abrir portas ao caminho da mente. Ancorada neles, queda-se a gente a invejar as casitas protegidas na verdura do vale; os montes de barra certa, clausura de cal a escaldar; um ou outro cottage em caprichada inglesice. À distância, ressumam  harmonia e pacatez de vida singela: não há rumor de mau carácter que as assombre, um cisco que as suje, uma tristeza a toldá-las. Incógnitas, engolem humanidades fétidas e mofam de rigores e penas, nódoas e lixos.    Contudo, nas entranhas proliferam-lhe humores milenares, crescem fungos e bolores de mistura com o florido cheiro do pão.
As casas são secretas. Os segredos murados dos homens entranharam pelas paredes, portas e janelas sabem o que guardam. As casas mantêm-se firmes e confiáveis até que o tempo as derrube e tudo leve. Nenhum homem é só uma casa. Mas também ele é um ser secreto. Ora, um ser secreto é diverso de uma coisa secreta. Os seres, especialmente os humanos, são comunicativos, usam a palavra e todo o corpo para dizer. Comunicar é, pois, condição necessária: compreender e ser compreendido estrutura-nos. Contrariando Pessoa, pelo menos aos bocadinhos, somos seres de companhia.
Dentro da panóplia comunicativa, os segredos são, quase sempre, um peso que une, pelo menos, dois sujeitos comunicativos. E no entanto o secretismo obriga ao silêncio. Nesse sentido, qualquer segredo é uma verdade difícil guardada por motivos vários, mais e menos abonatórios. Transmitir um segredo é violentá-lo, é acção contranatura ao pacto firmado. Mas corresponde ao alívio de comunicar. Há segredos de morte e segredos de vida. Por alguns se morre e por outros se vai morrendo. Mas os segredos alegres alimentam a existência. Todos os homens são secretos, mas nem todos sabem ou servem para guardar segredos. A psiquiatria e os confessores são os mais comuns receptáculos de segredos, vasos que se supõem sem fundo e onde cabem tantos quanto se queira ou possa (os psiquiatras guardam-nos caro), gente a quem alivia contar e que ainda dão troco: confortam, sugerem. Gosto de pensar que fazem o papel da cova do barbeiro de Midas sem que lhes nasça um ervaçal delator.
Bom, como todos sabem, Midas era um rei com mãos de fada, tudo em que tocava se transformava em ouro. No entanto, por castigo de Apolo nasceram-lhe orelhas de burro o que bastante o chateou – é evidente que um rei com orelhas de burro cai mal ao próprio e lhe diminui o prestígio –. Para contrariar a maldição – e a ocultar –, deixou crescer longos e anelados cabelos (por certo os ripava e fazia aqueles ninhos de vespa que as mulheres usavam nos anos 60). Mas do barbeiro não conseguiu esconder a verdade das orelhas de jerico.  Em desespero de causa, fê-lo jurar, sob pena de morte, que não contaria a ninguém o segredo. Atormentado, o barbeiro aguentou uns tempos até que, não podendo mais com segredo de tal envergadura, mas temendo a morte, abriu uma cova e deitou lá para dentro a verdade. Vezes sem conta repetiu: o rei tem orelhas de burro, o rei tem orelhas de burro...Depois tapou e arrasou o fundo buraco e continuou a sua vida. Aliviado. Mas aconteceu que nasceram ervas no local da cova. Ervas coscuvilheiras e mágicas que mal o vento lhes assobiava às canelas logo soltavam o segredo, “o rei tem orelhas de burro, o rei tem orelhas de burro”.  E rapidamente o rei soube – todo o reino soube – e o pobre barbeiro foi morto. Ora o malogrado homem não contou a vivalma, guardou para si mesmo o que sabia; ele apenas libertou o seu peito cativo e asfixiado de tanto peso – lançou-o à cova funda, sepultou-o. Este barbeiro é do mais humano que existe e estou em crer que a psiquiatria lhe deve bastante.
Mas Mafalda Anjos ousa, na sua crónica da Visão nº 1229, ancorada na disciplina de ética alemã de que se afirma aluna (também estou em crer que a ética alemã não será flor que se cheire), comparar a ombridade deste barbeiro à sem vergonhice de José António Saraiva.
É que, menina Mafalda, não tem nada a ver. Digo eu, à portuguesa. Com a ética que minha mãe me legou. É que o Saraiva (o fulaninho da história mesquinha que toda a gente conhece)  não toca no mito grego nem com a fralda da camisa.


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