Os
olhos são bandeirantes que sobem e descem na paisagem a abrir portas ao caminho
da mente. Ancorada neles, queda-se a gente a invejar as casitas protegidas na
verdura do vale; os montes de barra certa, clausura de cal a escaldar; um ou
outro cottage em caprichada inglesice. À distância, ressumam harmonia e pacatez de vida singela: não há rumor
de mau carácter que as assombre, um cisco que as suje, uma tristeza a
toldá-las. Incógnitas, engolem humanidades fétidas e mofam de rigores e penas,
nódoas e lixos. Contudo,
nas entranhas proliferam-lhe humores milenares, crescem fungos e bolores de
mistura com o florido cheiro do pão.
As
casas são secretas. Os segredos murados dos homens entranharam pelas paredes,
portas e janelas sabem o que guardam. As casas mantêm-se firmes e confiáveis
até que o tempo as derrube e tudo leve. Nenhum homem é só uma
casa. Mas também ele é um ser secreto. Ora, um ser secreto é diverso de uma
coisa secreta. Os seres, especialmente os humanos, são comunicativos, usam a
palavra e todo o corpo para dizer. Comunicar é, pois, condição necessária: compreender e
ser compreendido estrutura-nos. Contrariando Pessoa, pelo menos aos bocadinhos, somos seres de companhia.
Dentro
da panóplia comunicativa, os segredos são, quase sempre, um peso que une, pelo
menos, dois sujeitos comunicativos. E no entanto o secretismo obriga ao silêncio.
Nesse sentido, qualquer segredo é uma verdade difícil guardada por motivos
vários, mais e menos abonatórios. Transmitir um segredo é violentá-lo, é acção contranatura ao pacto firmado.
Mas corresponde ao alívio de comunicar. Há segredos de morte e segredos de
vida. Por alguns se morre e por outros se vai morrendo. Mas os segredos alegres
alimentam a existência. Todos os homens são secretos, mas nem todos sabem ou
servem para guardar segredos. A psiquiatria e os confessores são os mais comuns
receptáculos de segredos, vasos que se supõem sem fundo e onde cabem tantos
quanto se queira ou possa (os psiquiatras guardam-nos caro), gente a quem alivia
contar e que ainda dão troco: confortam, sugerem. Gosto de pensar que fazem o
papel da cova do barbeiro de Midas sem que lhes nasça um ervaçal delator.
Bom,
como todos sabem, Midas era um rei com mãos de fada, tudo em que tocava se
transformava em ouro. No entanto, por castigo de Apolo nasceram-lhe orelhas de
burro o que bastante o chateou – é evidente que um rei com orelhas de burro cai
mal ao próprio e lhe diminui o prestígio –. Para contrariar a maldição – e a ocultar –, deixou crescer longos e anelados cabelos (por certo os ripava e fazia aqueles
ninhos de vespa que as mulheres usavam nos anos 60). Mas do barbeiro não
conseguiu esconder a verdade das orelhas de jerico. Em
desespero de causa, fê-lo jurar, sob pena de morte, que não contaria a ninguém
o segredo. Atormentado, o barbeiro aguentou uns tempos até que, não podendo
mais com segredo de tal envergadura, mas
temendo a morte, abriu uma cova e deitou lá para dentro a verdade. Vezes sem
conta repetiu: o rei tem orelhas de burro, o rei tem orelhas de burro...Depois
tapou e arrasou o fundo buraco e continuou a sua vida. Aliviado. Mas aconteceu que
nasceram ervas no local da cova. Ervas coscuvilheiras e mágicas que mal o vento
lhes assobiava às canelas logo soltavam o segredo, “o rei tem orelhas de burro,
o rei tem orelhas de burro”. E
rapidamente o rei soube – todo o reino soube – e o pobre barbeiro foi morto.
Ora o malogrado homem não contou a vivalma, guardou para si mesmo o que
sabia; ele apenas libertou o seu peito cativo e asfixiado de tanto peso –
lançou-o à cova funda, sepultou-o. Este barbeiro é do mais humano que existe e estou
em crer que a psiquiatria lhe deve bastante.
Mas
Mafalda Anjos ousa, na sua crónica da Visão nº 1229, ancorada na disciplina de
ética alemã de que se afirma aluna (também estou em crer que a ética alemã não
será flor que se cheire), comparar a ombridade deste barbeiro à sem vergonhice
de José António Saraiva.
É
que, menina Mafalda, não tem nada a ver. Digo eu, à portuguesa. Com a ética que
minha mãe me legou. É que o Saraiva (o fulaninho da história mesquinha que toda
a gente conhece) não toca no mito grego nem
com a fralda da camisa.
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