sábado, 10 de setembro de 2016

Praia, cães e assim

Pois é, há gente que detesta cães na praia. Mas eu gosto deles. Há os que nadam satisfeitos e, em jeito de diversão gaiata, vão buscar uma bola onde quer que esteja. E há os que correm faceiros pela areia, mas não se aventuram na água. Chegam-se à beirinha das ondas e voltam atrás, a bola lá à frente a oscilar e eles, rabinho entre as pernas a disfarçar (diria que a assobiar). Eu a rememorar estares marítimos dos canídeos e o meu pai sentado quieto, a velhice surda ao mundo, meio apavorado do coração que o acompanha e bate em lentidão estafante. E eu lá, junto à orla das ondas a aspirar o iodo deleitado, dois cães primaveris em fim de verão, a aproximarem-se em mordidas de galhofa, o pêlo em corridinhas alegres, ora a misturar um com o outro, ora em prestes distância. O meu pai esperançado no sentimento filial,  talvez por desconhecer outro meio e eu estar mais à mão, filha não te demores. Descanso-lhe a infância de receios, certifico-o de mim, e murmura um está bem descrente. Os dois cães perseguem-se na areia, um deles ganha confiança, roça-me os tornozelos com os pelos macios e molhados e fica a olhar-me com aquele jeitinho terno de animal que nos gosta imoderado enquanto o outro espera, olhos meio sorridentes e conhecidos.  Em seguida, abeira-se a olhar-me. Mas, hélas, há sempre um dono que vigia, quem sabe a pensar que me incomodam quando afinal já tínhamos encetado conversa, eles a cirandar entre as minhas pernas e os sacos, em reconhecimento farejado. Mas é claro que os donos não sabem estas coisas, assobiam e eles primeiro de ouvidos moucos e depois obedientes. Hoje, o meu pai pôs  uns olhos assim, dependentes. Mas não primaveris. Exauridos e a desbotar. O que fizeste àquele rapaz alto de suspensórios, pai? Alguém o riscou do calendário junto com a feroz determinação dos olhos pretos, a desenvoltura, o cheiro a sabão e suor de saúde. O que eu temi esse rapaz. Quanto desgosto santo Deus. Pensava-o mais veloz que o relâmpago, mais azedo que o trovão. E desapareceu sem rasto. Sento-me na minha cadeira de ver ondas a ir e vir e tu desabafas, ainda bem que não demoraste. Respiro o sol, impregno de maresia, tento guardar o odor dentro de mim por meses e meses, a pituitária a negar o cheiro a chichi e velhice que se desprende, a imaginar como dizer-te o que nem notas, com medo que o rapaz durma no teu fundo e se moleste. Afastando a agonia de urina velha e insidiosa, lastro nos interiores de muita hora. Pelos meus olhos passa agora um senhor com um cão bem tratado, pêlo a acastanhar, luzindo no sol. O animal não me repara, o dono basta-lhe. O homem, bastante moreno, calção de riscado desportivo, parece ter um fito no longe da praia. Imagino que partilhem  o mesmo recado por cumprir. Ou o mesmo hábito. Penso no meu cão preso a uma corrente, o verão gasto numa nuvem de pó. Os animais, como as pessoas, não nascem todos iguais. Isso de sermos todos iguais é relato, conversa de crente. Oiço-te o nome no altifalante e não boles. Toco-te no braço, faço sinal a acabidar papéis e levantas-te esforçado, a arfar. Queres-me na frente, calas-te. E eis-te de novo sentado e quieto. Debalde procuro os suspensórios, assentaste de vez em seres outro. Entras e fixas os olhos na blusa enquanto explico o que nem ouves. A meio, soltas a despropósito e como que em desculpa, tenho uma horta, semeio, planto, o senhor doutor sabe...e ele não sabe, pai. Se pegou numa enxada, foi para a mudar de lugar. Ele não sabe do teu caminho longo que não vem na papeleta. Também parece cansado, o médico. Abraça-lhe o pulso direito uma pulseira em tecido, serpente verde e preta a destoar, prenda de alguma neta, por certo. Encho-me de ternura por ele. E por ti, agarrado ao boné de cortiça que o neto te deu e tens medo de esquecer. É assim mesmo, os velhos apegam-se ao futuro na esperança da duração. E eu não de pé em gravidade e lisura. Eu na minha cadeira azul a observar a dignidade vaidosa daquele cão a devir ponto na paisagem, desvanecida com os dois brincalhões que de novo escapuliram e se roçam gaiteiros sob as minhas mãos, a encostarem-me nas pernas. Isto antes do assobio e da obediência. Fecho os olhos e não te conduzo a casa. Nada. Estou ainda a olhar as ondas e a prata do mar, a sentir a libertação de só a água a envolver-me o corpo. E tu a saíres do carro em agastura de membros. Tu grato, se eu fosse sozinho nunca mais o médico me dava a mesma atenção.
            E eu em degustação de macio irrepetível, pés enterrados na areia. Atravesso o teu 

portão que já não fecha. Estás ainda no retrovisor. Parado. Corro e mergulho no alcatrão.                                       

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