sábado, 24 de fevereiro de 2018

Acasos e Circunstâncias

Quando Lobo Antunes escreveu uma crónica impante de pequenos prazeres – prazeres mais ou menos inocentes que os outros ele coíbiu e não contou – logo verifiquei         que os meus momentos gozozos eram outra natureza e num repente pensei copiar-lhe a ideia. Fiquei-me na intenção, posto o que, estou convicta, o inferno me aguarda enfronhado em seus tórridos calores. Ora, por acasos e circunstâncias, o meu dia de hoje correu afadigado e momentos gozozos não sei se teve, mas um café avantajado tira-me do sério e às sextas há pouca coisa capaz de me abalar a disposição.
A bem contar,  o meu hoje começou ontem. Isto porque a idade chama umas manias orgânicas que a vontade obedece. Foi assim: sabendo embora que o meu sono apanha o comboio a horas certas, ontem resolvi contrariar, fazer serão e portar-me como outrora, quando lia sem destino até às tantas da madrugada. Foi óptimo. Enquanto li. Mas o sono voou. E, nos breves intervalos de dormir, logo o enorme lago do livro se transmutou e me vi a tentar nadar num lago que mais parecia um riacho, quase sem água, com pargos gordos e dormentes entre as pedras e eu prazer algum, a lançar os braços atrás – nadava costas – e a pensar, agora a mão bate nas escamas do peixe ou acerto no bico de uma pedra. De modos que por mor do medo de ambos, acordava. Adormecia de novo e a minha gata gorda, opada como os pobres ratinhos das experiências a quem estimulavam o centro da fome e que devinham bola de pêlo, bigodes retesados como agulhas. Voltava a acordar, contente de ser sonho. A bichana tem andado a portar-se mal, mas não merece tanta tragédia. Mal adormecia, logo outro pesadelo galopava a madrugada (esqueci o último). Portanto: a modos que quase não dormi. Mas depois de un latte macchiato (muito macchiato) esqueço a penúria nocturna, estou pronta para a manhã de trabalho. Sozinha em casa (com a mulher a dias), sem necessidade de fazer um almoço comme il faut. Uma tarefa menos; noves fora, nada. Passemos mais ou menos em branco esta parte de corre corre entre lavagens manuais de roupas e tapetes, ajudas domésticas de mil pormenores saturantes, dar cera no chão que a gata tem andado feita anormal ou está com problemas de bexiga... Caiamos na piscina. Isso sim, é um prazer dos maiores (coisa de que Lobo Antunes não aflora). Mas atraso sempre. Por mais que deseje chegar a horas, às sextas, sou impontual. Entro cansada, saio cansada. Mas é outro o cansaço final, e no durante deslembro de fadigas. Sou bem capaz de me cansar. A posteriori, ganhei consciência de que me divirto grandemente e sem amanhã. Por magias da água aquecida, volto à infância, pertenço a um mundo só com presente e canso-me de vontade. São 40 minutos fugazes, sobretudo porque nado só 25 ou 30. (isto nos meus dias mais cumpridores). Depois de um banho revigorante, saio de cabelo quase a pingar – e não, nunca por isso me constipei – e vou às compras (compras à sexta aborrecem-me, encontro sempre gente conhecida e ando meia arredia de conversa mole). Demora. Enreda. Desinteressa.
Em casa, verifico o chão que a gata estragou e tentei restaurar durante a manhã. Não está bem. Volto à cera e faz-se tarde para as minhas horas em casa de meu pai (que deviam ter sido ontem, mas foi impossível).
Na casa paterna, começo por cirandar no pomar a encher sacos de laranjas. E depois, o trabalho espera. Com meu pai a perorar de quando em vez: deixa isso, eu faço isso com a esfregona e fica bem lavado, para que andas de rabo no ar, esfregão verde e lexívia. Não me dou ao trabalho de responder. E nem posso parar que há muito por onde e as horas correm. Termino já depois das dezanove (dou por terminado, que não é exactamente a mesma coisa). Ele acendeu a lareira e resmunga da sala, a tua irmã é que faz bem, não põe aqui os pés. Ignoro. Largo o avental, enfio um casaco, enfio no saco o material para lavar em minha casa, fecho portas, mudo a chave para o lado de dentro, dou uma vista de olhos ainda assim alguma coisa fora do lugar. E rumo a casa pensando que fiz bem em colher primeiro as laranjas.
Arrumo o carro e a gata vem pedir a janta – tem razão, passa da hora. Depois de almoçar numa fona e saltar o lanche, também eu esfomeei. Mas há ainda a roupa e tapetes por apanhar, a lenha para a salamandra, as janelas de olho aberto, o diabo a sete. Atendo a gata e decido jantar antes que me dê uma coisinha má. Só depois trato de acender a salamandra. Numa das viagens ao quintal escorrego num plástico e caio de joelhos no cimento. Vá lá, não foi pior. Depois, sento-me a olhar as chamas. Invade-me um cansaço cilíndrico, denso e volumoso. Sinto-me imprestável, confrange-me pensar no tricot. Talvez ver um episódio de uma série televisiva. Experimento, grande parte passa sem registo, dói-me tudo. Ponho hirudoid nos joelhos e subo. Neste momento, quase passou. Talvez tenha sono.

Oh! As alegres sextas feiras.

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