quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Ideias e Caprichos


Sem dar conta, perseverava no hábito de me tomar como prioridade. Mais do que por ti, as lágrimas lamentavam o sonho desfeito e a tristeza eclodia sobretudo pela mudança de registo na vida, a dor a atingir-me até aos cantos mais escusos da vaidade. E nem poderia ser de outra forma, única filha  de gente que tinha de seu, educação esmerada, casamento condigno. É quase paradoxal, filha, mas foste o descalabro e também a via que me conduziu. Não que a tenha desejado. Ignorante, julgava possuir-me nesse esforço da vontade que era afinal a posse do que estava fora de mim. Mas a vida de cada homem tece-se mais nos improvisos de acaso que nas deliberações racionais e programadas. Contudo, até nasceres, julgava submetê-la à vontade. Guiada por uma ingenuidade com toques de existencialismo, fazia da vida o amante soberbo que comungava dos meus gostos e eu comandava de peito feito, ao volante do querer. Tinha consciência da morte mas, no campo hipotético que então gozava – os jovens vivem num imenso campo de hipóteses -, sentia-me infinita e omnipotente, a morte um ser longínquo e atávico, certeza última e muito aquém do futuro inexcedível que me aguardava. Nenhuma tropelia do acaso parecia suficiente para desmerecer ou inibir as minhas determinações. Era saudável e bem nascida, razoavelmente bonita e inteligente; teimei em estudar e ter uma profissão que me assegurava o futuro, decisão que meus pais desdenhavam, mulheres de bem têm o mundo de sua casa, não se sujeitam a horários e patrões desumanos de que tu podes prescindir. A adensar o mau gosto, recusei ser professora ou médica, situação profissional que, com relutância, admitiam servir melhor a condição feminina. Espicaçada pelos torneados que a lei permitia, atraía-me o Direito e suas ratoeiras legais. Os teus avós, vindos de um tempo de fortunas sólidas e ambientes onde a cultura era quase propriedade exclusiva do reino macho, tomaram o meu entusiasmo por snobismo volátil, ainda que minha mãe, exalando vaidade pesarosa, suspirasse às amigas nas longas tardes de canasta e bolinhos folhados, é capricho e acinte contra nós, a filha desiste a meio do ano. Não desisti.
O curso não me trouxe apenas a profissão remunerada e a independência de penates, desenvolveu também um lado belicista que se comprazia a esgrimir argumentos irresistíveis. Surpresa, assistia  à eclosão dessa mulher arguta e impiedosa,  capaz de se demorar madrugada fora no esquisso de uma defesa ou acusação de que retirava lúdico prazer. Foi nesse trâmite de omnipotência juvenil que conheci teu pai. Um amor relâmpago, de tudo certo. De um lado e outro, as famílias apadrinharam a escolha. Um juiz e uma advogada. E lá vieram de novo as benesses que a nós dois pouco diziam,  boas famílias, bens materiais, um parzinho romântico muito aceitável. Daí ao casamento, foi uma revoada de coisas novas: casa a ser construída na cidade, dois pisos com jardim e garagem que requeriam empregada privada; e a preparação da cerimónia onde eu me cingia a palpites coloridos, a mãe um fiscal derramado sobre os detalhes. No zelo da paixão, pormenorizava-me a conhecer teu pai, a aprender-lhe cheiros e gestos, modos de olhar e andar, ternuras e arroubos masculinos que desconhecia e, deliciosos, me incendiavam os lugares mais estranhos, coração quase a descompactar de tão saliente.  O mundo de teus avós pouco me ensinara do amor, dois seres cerimoniosos e pouco efusivos, precatando-se de qualquer manifestação pública de ternura. Em suma, encantei demoradamente no primeiro espécime masculino que se achegou em admiração de amor deslumbrado. Dançámos namoro fora, aplaudidos por amigos e conhecidos. Feitos um para o outro, texto e panela a revolutearem de salão em salão. Pés e coração em uníssono, ao ritmo da música. Sem outras contendas que as da profissão.
 Rodeados de prendas e bençãos, casámos.

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