domingo, 4 de fevereiro de 2018

Estranha Forma de Vida

Não te pensei em criança e tampouco quando cresci. Também não sei precisar a data em que te concebemos. Mas esperámos-te, ou pelo menos eu esperei-te, de surpresa em surpresa, à semelhança de outras mães a estrear. Tecida em vagares, mudaste-me o corpo por inteiro. Um dia, a roupa não apertava na cinta; outro, os botões que me rodavam no peito caíam despedidos; agora, agoniava-me a pasta de dentes; logo, não sofria o cheiro do peixe e da carne; hoje, cheirava-me o bolor das casas velhas, o mofo de pó nos objectos escondidos, o nauseabundo das carpetes; ontem, desfalecia nos lugares mais impróprios. Foi assim que te anunciaste, filha. O teu início foi um estranho suceder de incómodos sofrido na carne.
Nas consultas, o médico ouvia-te as batidas do coração e descansava-nos. Entretanto, comecei a sentir-te os movimentos. Nessa fase de gestação, o teu corpo criou volume e o meu adensou. Pesadamente. Eras um redondo que me alargava os pés e inchava as pernas, uma ou outra cobra varicosa azulando saliências. Pressentia-te o sexo, gavetas a extravasar de folhos e bordados, lacinhos e flores. Sem palavras, teu pai observava a minha azáfama de engavetar nuvens, olhos delatores, “e se é menino”. Mas eu sabia-te por dentro da infalível certeza materna. Comprazia-me dar-te os alimentos que requerias em apetite voraz, passeei-te amorosamente pelas tardinhas da cidade e demorei-me nas manhãs campestres, levei-te a ouvir música clássica e logo te recolhias mal te sentindo boiar dentro de mim. Entretanto, alongavas-te e exigias espaços peremptórios. Dia a dia, de hora em hora.  No final dos nove meses nada me servia, o início da barriga um travão à paisagem do corpo e a indumentária reduzida a um macacão muito do teu gosto. Fomos nele para o hospital. Não sei como te sentias, eu apavorava com o desconhecido para que não havia fuga, temia aquele modo de pertença à natureza e à dor, via-o como cruz que se carrega.
Chegaste embrulhada em problemas, quando o meu sofrimento era já intolerável e a mente em roda livre, desabalada pela dor, te obliterava e esquecia. Tirada a forceps, roxa, semeada de inchaços dolorosos, em dificuldade respiratória que te afastou algumas horas. Não te tive viscosa e escorregadia, pele contra pele, antes do corte do cordão umbelical. E tanto te gosto, filha.

No momento em que o meu corpo conseguiu expulsar-te – querias ficar lá dentro, bem o senti – desceu-me um bem estar de sonolência beatífica. Quando acordei, berço ainda vazio, teu pai beijava-me a mão, foste uma valente. Foi nesse momento que o meu amor por ti subiu avassalador, como se diz que sobe o leite materno. Sem quê nem quê. Supus que alguma coisa não estava certa contigo, terias morrido enquanto eu dormia?! Teu pai descansou-me, tratavam de te normalizar a respiração. E preparou-me: é muito feinha a nossa filha. Depois, a enfermeira entrou contigo, jeito de pesar culposo, como quem deseja entregar-me embrulho diferente. Estendi os braços. Afastei a mantinha, observei-te, lágrimas gordas e involuntárias em caminho descendente. Não eras feinha, eras um aleijão, um bebé deformado, todo defeito. Estreitei-te, embalei-te na lua negra do meu desgosto revoltado. Franqueara porta indesejada. Como num pesadelo, desaparecida a porta, acuei sem saída. 

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