Sim,
filha, desfiz-me em lágrimas. Lamentei, da forma mais banal, a má sorte que nos
obscurecia o futuro. E também desejei que morresses, sentindo embora remorso por este
pensamento e a assumir que era mãe desnaturada, sem sentimentos. Assaltava-me essa esperança mórbida, insidiosa, quase uma obsessão. Esperava num acaso que
trabalhasse a meu favor e te levasse. Porque cedo ouvimos o vaticínio. Os
médicos que te observaram – em desesperada luta de conta
quilómetros, corremos país e sumidades – foram unânimes, sofrias de doença rara que misturava
gigantismo e um improvável
cruzamento genético que te percorria o organismo como praga, avolumava a
malformação e podia causar-te a morte. A mistura dos dois factores
condicionava-te a existência e retirava qualquer hipótese de normalidade externa ou interna. E eu em lágrimas, a antever o teu sofrimento, desconhecendo ainda como
reagia a tua mente, os médicos reticentes, exames e mais exames. Tudo em ti assentava numa falibilidade incomum. O vaticínio
de doente crónica foi corolário que intuímos. Cobarde, a cada má notícia ambicionava
para mim esse eterno esquecimento, o nada onde toda a miséria se dissolve. Mas a
coragem de chamar a morte não coaduna comigo. O caminho familiar
que antevia era um breu, e o teu surgia-me tão difícil que desejar-te o fim quase me parecia natural. E apostrofei
Aquele que era ainda o meu Deus. Sentia-me ignorada e ultrajada por esse ser
superior e ensurdecido que, sem motivo, teimava em me arremessar a cabeça
contra a parede. Por amor dos homens, Cristo nascera marcado para a cruz, estava
desde sempre condenado aos três dias de paixão e ao intenso sofrimento que exauria na morte destinada aos seres
mais ignóbeis. Mas tu, filha, nasceras para a dor física e psicológica em
continuidade, dia atrás de dia. E, por não seres Deus, só o soubemos após o parto.
Seria motivo bastante para te escorarmos em desvelo.
À
medida que dias e notícias tristes caíam uns sobre os outros, aprendias o teu espaço. Embora o berço te fosse
justo, parecias apreciar o quartinho airoso e o fundo de música clássica.
Adormecias a ouvi-la. Choravas pouco e quedavas a maior parte do tempo numa
espécie de admiração silente que também podia ser distracção, e me assustava
sobremaneira. Seguias-me a figura desde que entrava no teu raio de visão, facto
que te trazia ao rosto um simulacro de sorriso. O ser mais feio e indefeso que
conheci. Olhava-te e recriminava-me por constatações e desejos tão impróprios.
Para me penitenciar, cumulava-te de largos caudais amorosos a criar raiz. O
que eu temia conhecer-te a mente!
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