sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Desconcerto

Sim, filha, desfiz-me em lágrimas. Lamentei, da forma mais banal, a má sorte que nos obscurecia o futuro. E também desejei que morresses, sentindo embora remorso por este pensamento e a assumir que era mãe desnaturada, sem sentimentos. Assaltava-me essa esperança  mórbida, insidiosa, quase uma obsessão. Esperava num acaso que trabalhasse a meu favor e te levasse. Porque cedo ouvimos o vaticínio. Os médicos que te observaram –  em desesperada luta de conta quilómetros, corremos país e sumidades – foram unânimes,  sofrias de doença rara que misturava gigantismo e um improvável  cruzamento genético que te percorria o organismo como praga, avolumava a malformação e podia causar-te a morte. A mistura dos dois factores condicionava-te a existência e retirava qualquer hipótese de normalidade externa ou interna. E eu em lágrimas, a antever o teu sofrimento, desconhecendo ainda como reagia a tua mente, os médicos reticentes, exames e mais exames. Tudo em ti assentava numa falibilidade incomum. O vaticínio de doente crónica foi corolário que intuímos. Cobarde, a cada má notícia ambicionava para mim esse eterno esquecimento, o nada onde toda a miséria se dissolve. Mas a coragem de chamar a morte não coaduna comigo. O caminho familiar que antevia era um breu, e o teu  surgia-me tão difícil que desejar-te o fim quase me parecia natural. E apostrofei Aquele que era ainda o meu Deus. Sentia-me ignorada e ultrajada por esse ser superior e ensurdecido que, sem motivo, teimava em me arremessar a cabeça contra a parede. Por amor dos homens, Cristo nascera marcado para a cruz, estava desde sempre condenado aos três dias de paixão e ao intenso sofrimento que  exauria na morte destinada aos seres mais ignóbeis. Mas tu, filha, nasceras para a dor física e psicológica em continuidade, dia atrás de dia. E, por não seres Deus, só o soubemos após o parto. Seria motivo bastante para te escorarmos em desvelo. 

À medida  que dias e notícias tristes caíam uns sobre os outros, aprendias o teu espaço. Embora o berço te fosse justo, parecias apreciar o quartinho airoso e o fundo de música clássica. Adormecias a ouvi-la. Choravas pouco e quedavas a maior parte do tempo numa espécie de admiração silente que também podia ser distracção, e me assustava sobremaneira. Seguias-me a figura desde que entrava no teu raio de visão, facto que te trazia ao rosto um simulacro de sorriso. O ser mais feio e indefeso que conheci. Olhava-te e recriminava-me por constatações e desejos tão impróprios. Para me penitenciar, cumulava-te de largos caudais amorosos a criar raiz. O que eu temia conhecer-te a mente!

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