terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Remendar a Vida

Vários meses a passear-te dentro de mim. E sempre a promessa de voltarmos as duas mais tarde, num dia claro, imaginando-te a inquietação dos olhos a um lado e a outro, em absorção total. Mas a tua realidade adversa levava-me a evitar olhares debruçados  e estranhos que tomava por indiscretos, espontâneos pesares que me rasgavam pele, lamentos de estupor laminado a esfacelar-me o ânimo. A curiosidade geral, acesa pelo diz que diz, fazia-nos parar o carrinho a cada passo. Mas, “ver a menina”, destilava um incómodo de silêncio estupefacto que, de um lado ou do outro, rompia por uma pressa de compras e almoço, um lugar onde ir, a batida em retirada. E teu pai retraíu, vai tu com ela, não aguento mais. No lar, insolventes gavetas de cómoda luziam nuvens  e laços que nunca usaste, nada te servia. Por vezes, o meu desgosto mergulhava as mãos no veludo dos chambres, descia à maciez dos casaquinhos, abstraía nas touquinhas breves e floridas. Depois, cegava enraivado, dedos em garra a torcer tudo, laços desmanchados, o redondo rigoroso das écharpes a pingar, sapatos e botinhas esventrados.
O desgosto é capsular, cria distância. Dentro dele, obscurecemos. No olho do furacão, o acontecer alheio desmaia, des-existe. Daí que a minha memória de teu pai seja escassa. Inteira a meu cuidado, cabia-lhe o caminho de médicos e hospitais. Perdíamo-nos um do outro gota a gota, bonecos sugados pela desgraça. Fustigados pelo temporal, éramos duas árvores resistentes no cimo do morro.   No entanto, vejo a sua mão precisa a encontrar a minha, um saco de boca aberta frente à cómoda, não podes continuar assim, esvazia o armário, dá tudo isso; compramos novas roupas, fazemos outro enxoval, oferece este a alguém precisado.
Revoltei-me. Chorei. Barafustei. E dei tudo, filha. Depois comprei máquina de costura, chamei a modista a casa e ela talhou e coseu, peça a peça, o que precisavas.  Os laços não te brilharam, mas usaste-os; as botas não eram miniaturas, mas calçaste-as; os chambres bordados não te assentavam, mas havia que vestir-te alguma coisa. Na rua, já ninguém me parava para te olhar. Mas, nas minhas costas, como bocas de mil dentes a  abocanhar-me, escapavam-se cicios mórbidos  lá vai o bebé-bicho, diz quem viu que tem focinho em vez de cara, coitadinha dela e mais de quem a tem. E benziam-se enquanto eu passava, olímpica, a fazer de conta que não tinha ouvido mas ainda a escutar, achas que ela ouviu.

E os médicos, parece que com a mente está tudo bem, mas convém deixar passar uns meses. A essa altura, juro-te, filha, tinha consciência que nos entendíamos e eras inteligente. Mas talvez essa certeza intuída fosse mais um fardo. Que não pensei. Umbiguista, julguei poder ensinar-te algumas coisas, conversar, brincar, passear.

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