terça-feira, 8 de abril de 2014

Os Anjos também Morrem V

Num rompante, a parceira da Elisa chegou-se à amiga e puxou-a para o gesto quente do Garcia, a fazer-lhe espaço. As mulheres à boca pequena umas para as outras, em comedidos gestos de desaprovação, vestir a gaiata toda de preto… Entretanto, a mãe da Elisa, boneca desarticulada a pender para todo o lado, foi carregada para a carrinha do merceeiro, num estertor sem palavras, enquanto o pai aguardava o prior que chegara na lambreta cinzenta. As mulheres, ah, agora é que sim, e outro olhar ao monte e às portas fechadas.
O Padre Alberto parou no meio da rua, desceu e puxou a lambreta atrás. O Garcia sabedor, olha para aquilo, agora vai pô-la no descanso. E uma rapariga intrigada, como é que tu sabes que a lambreta vai descansar, vá…e ele, tchiii, és mesmo burra, tu, e deu-lhe as costas. Um funeral inteiro a observar o senhor padre com uma chavinha na mão a abrir um compartimento da lambreta e a retirar um tecido roxo, que desdobrou e deitou ao pescoço enquanto apertava a mão ao pai da Elisa e ia até ao carro onde a mãe desamparava. O Toino, que fazia vezes de sacristão em domingos de missa, entrou em explicações, aquilo é uma estola e é um paramento. Um quê?! E ele a soletrar, muito cheio da novidade, um pa-ra-men-to. O Zé Manel, e isso é o quê? E ele, sei lá, o padre é que me ensinou. Entretanto, padre Alberto fechou a porta do automóvel e as facturas sobre a pilha de sacos de arroz, no lado esquerdo do banco traseiro, ensaiaram um voo que a mão do senhor João acalmou de relance, o braço lançado atrás, quase sem se virar. Ao volante, soturno e de lápis ainda atrás da orelha, desejava-se na quietude da loja, entre os sacos de milho e de feijão, a respirar o cheiro dos cominhos e da erva doce arrumados na ferrugem da medida de litro, por cima balcão. Mas, no banco ao lado, um encapelado desgosto. E ele, silente e inapto, a afundar.
O prior em conferência com a professora, agilidade de hábito a ajeitar a estola. Depois, a encaminhar-se para a frente dos garotos e posto em espera, a obstruir a visão da Laura. Em seguida, os quatro garotos, cada um em sua pega, seguiram com a pequena carga atrás do prior que iniciou o andamento. E parte das crianças a experimentar bicos de pés e pescoço de girafa para verem a criança morta, em sussurros respeitosos que corriam de uns a outros, tem a cabeça deitada numa almofadinha com laços e rendas e está todo penteadinho, espreita lá, parece mesmo que está só a dormir. A Laura a coxear, imediatamente atrás do féretro, ui, o pé tá-me a doer mais. Volvidos alguns metros, esquecida da voz baixa, a cutucar o braço da colega, já viste, aquela caminha, é tão bonita, toda forrada de branco, olha lá…cheia de rendinhas e tem um lençol todo a brilhar…- e a parar de repente, olhos marejados, os outros a amontoar, quase a caírem-lhe em cima, inesperados – ai! Não sou capaz de andar mais. O senhor prior, que tinha começado uma avé-maria, esperou pela segunda metade - a vez da outra gente -, voltou-se para trás e disse-lhe num meio sorriso, não podes falar alto; e mirando-lhe os pés de verniz, descalça-te, levas o sapato na mão. E ela a ganhar tamanho, toda importante e agradecida ao prior. Os outros atrás. Parados. Um murmúrio de assentimento a percorrer a formação, pois é, pois é, coitadinha, as borregas doem muito, enquanto a garota desafivelava os sapatos; e depois, todos a espreitá-la, um sapato em cada mão, a Conceição de mão dada à biqueira, a ensaiar o dever da tristeza a que as bolhas nos pés se tinham sobreposto. O corpo inteiro da Laura concentrado nas peúgas a aquecer no alcatroado. E um sorriso a contar-lhe o descanso; ela a pairar, em pés-pluma. A parceira num soslaio, o melhor é saíres um bocadinho da forma, senão o de trás ainda te pisa os calcanhares e até vês estrelas. E depois de responder a um Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, logo, a tua mãe se calhar bate-te, vais rasgar as meias todas no caminho. Mas a Laura a sentir o calor do chão, desimportada do irremediável, bichanando no ouvido da outra, em descoberta, a estrada pega-se às meias – e sem transição -, o bebé é tão bonito não é? Parece que tá a dormir, olha lá os caracolinhos tão loirinhos – e logo, pensativa – como é que se morre? E a Conceição, eu acho que o ar não entra e morremos. A Laura agora levezinha, sem o tormento da dor, a poder pensar nisto e naquilo, opinativa, vamos experimentar morrer, só pa ver como é – e assaltada pelo receio - mas antes de morrer, respiramos, tá bem? Vamos a ver quem aguenta mais. Um, dois, três. E sustiveram a respiração. 
E foi assim, embatucadas e muito vermelhas, boca firmemente apertada, que a professora as encontrou quando veio à frente. Olhou os sapatos e os pés da Laura, a pose das duas, chegou-se a elas e bichanou irritada, que é que vocês estão fazer?! E elas entreolhando-se sob o aço das lâminas de âmbar, embezerradas de falta de ar e esforço, a medir consequências e a desistir de imediato. E depois de funda inspiração, ahnnn…., nada, minha senhora, olhos no alcatrão, à espera da palmada que não houve. A professora muito séria, a fazer de conta que não tinha entendido, juízo! E mandou parar todos para fazer a troca dos garotos. 
Então, a D. Vitória aproximou-se com o moxo e eles poisaram o fardo em minúcias de desvelo, como se a criança pudesse sofrer nos balanços da viagem. Nesse momento, um carro passou lentamente na outra metade da Nacional e como que participou do ritual. As pessoas, por detrás dos vidros, a olhar e a persignarem-se, bocas a exclamar involuntárias penas, olhos de sexta-feira de paixão a escorrer tristezas vidros abaixo à vista da criança dormida no eterno, em seu alvo nicho de renda e cetim. E era como se o veículo fizesse corpo com eles: seguia a par, freado da rapidez que lhe pertence, pesaroso e contrito, em romagem de dó e compaixão de motor, a mastigar pensamentos de gente que saia devagar do estranho quadro, com acenos de cabeça, incompreendida do caminho que percorre. Até que, enfim, o automóvel se resolveu e acelerou, os passageiros virados para trás, braços e tronco a serem vultos sem detalhe que emagreciam na distância, mancha pequena a minguar no vidro traseiro; depois o carro só um pontinho azul, a perder cor até se dissolver no horizonte. O grupo de crianças de novo se concentrou em si, a interrogar mudamente, como é levá-lo, pesa muito. E os quatro lá de trás, à socapa, a exibirem as mãos vincadas e vermelhas. E um jeito limpo a definir-lhes as linhas do rosto, fui capaz, ajudei; os olhos: se for preciso, pego de novo. 

Sem comentários:

Enviar um comentário