quinta-feira, 17 de abril de 2014

Forças de Acaso

“O homem põe e Deus dispõe”. É atordoante. Como se uma entidade exterior – Deus - seja constante na mensagem de “não pode ser” ou “eu não quero o que tu queres” ou, em leitura mais realista, “o mundo não obedece à tua vontade”. E isto irrita quase tanto como unhas a riscar no vidro. Mas existe. Vamos até prescindir de um Deus que tudo pode e vê – como distorcer-nos o campo do agir e modificá-lo. Cinjamo-nos a esse emaranhado de relações interpessoais talhadas no imprevisto da imanência; atendamos aos acasos de existir. E compreendemos que projectar não é realizar; e que a antecipação do futuro pertence-nos bastante mais que ele. A inscrição do projecto no presente obriga-o a conformar-se à realidade. Foi o que me aconteceu no concerto de Páscoa.
Era ainda Natal quando comprei dois bilhetes e ofereci um deles. Depois, aproveitando uma série de coincidências nessa data, marquei um jantar com amigos. Mas o acaso, que às vezes nos persegue, truncou a refeição e também a companhia no concerto. Não desisti. Em cima da hora ofereci-me e ao bilhete para João Sebastião Bach, A Paixão segundo S. Mateus. E fomos aceites. Eliminado o jantar, limitei-me a propor uma visita prolongada a um sorriso bonito e suave que muito prezo - Maomé não podia ir à montanha.
No dia do concerto, perdi-me a escrever qualquer coisa, atrasei e cheguei esbaforida à Gulbenkian ainda os carros das televisões não tinham saído -  decorrera uma conferência sobre o 25 de Abril com gente de altas esferas, bem mais importante que um Cristo morto há tempo demais. A minha companhia aguardava-me na entrada. Amei aquele encontro, “quem sabe se não é melhor assim”. O auditório em completo silêncio mal os músicos e os coros entraram e o eu que é mim a encantar na paisagem do fundo. Na quietude clara da tarde, o jardim da Gulbenkian detinha uma aura de graça  japonesa: debruçava-se-nos. As árvores em arcos de flores semi abertas que abriam esboços de nuvem rosada e pontilista, a emergir do veludo verde da folhagem. Em grande plano, um arbusto oscilando exuberâncias de alva floração. E os pássaros. Em sua casa. A voarem-nos à frente. Dolentes e sinuosos, rémiges em leque. Dei uma olhada ao palco e, lá atrás, bem no meio, um coro infantil vestido de vermelho.
Depois a música cresceu e fui sendo levada. Deixei de sentir-me como ser individual, transportada a uma angústia do universo, como se conseguisse encarnar todo o sofrimento e toda a esperança do mundo. Ali, no meio da atenção de tanta gente, sou a voz dos que não puderam ouvir nem ver, dos que sofrem, dos mortos que vivem em mim o seu impossível. Oh, excessiva gente que reúno! Somos nós todos que choramos as lágrimas de Pedro e o seu arrependimento comovido; e, se cruzo os dedos no solo da flauta, não são apenas os meus dedos cruzados. As notas arrancadas aos instrumentos não nos levam ao colapso; tem de acrescer-lhes a força das vozes em uníssono, a destruir barreiras, corroer muros, evadir.

É sempre uma surpresa a interrupção, seja intervalo ou fim. Saio reabilitada, a interessar-me por quem me acompanhou e esteve afinal mergulhado no seu mundo paralelo. Saímos em passos indiferentes de caminho, a comparar percursos da alma que desvanece nas sendas do ser.

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