segunda-feira, 14 de abril de 2014

Os Anjos também Morrem VI


Ao longo da peregrinação, a despeito das mulheres que acorriam para ver o bebé e acompanhar, “eu sou tia velha”, “eu fui vizinha”, “deixem-me ver o anjinho”, o senhor prior foi sempre cantando e rezando, a incentivar a resposta de quem seguia lá atrás. D. Vitória, se avaliava demora na paragem, acorria com o banco, punha-o por baixo da caixa branca e os garotos descansavam. Solenes. Direitos. Comidos da tristeza de quem chegava. O pai, quase ao lado do padre, a pisar alheado, indeciso das mãos estendidas de quem vinha; perdido. Se alguém, então e ela, ele encolhia ombros estrangeiros e eram os garotos que, vem lá atrás, no carro do senhor João. A Laura espiava-o e intrigava num cochicho, não mexeu a boca nem uma vez, só se assoa e mais nada. A Laura não tinha ainda aprendido corações que sangram sem derrame e gotejam para dentro, em carne viva que se não vê. Nenhum deles suspeitava de desgostos que fazem ninho em tristezas enraizadas. Por isso, apenas estranhavam.
E até ao final da aldeia foi um vir às portas em cada casa, o grupo a parar uma vez e outra. E outra ainda. Depois, penetraram em território desconhecido e ninguém a assomar. Ganharam terreno, atentos às orações e cânticos do Padre Alberto, olhos afadigados em paisagem nova e estranha, casas diferentes, jardins com flores, baloiços que não eram cordas de poço atadas numa pernada de figueira, que eram de ferro alegre e tinham uma tábua ou um pneu onde, imaginavam, devia ser bom sentir-se voar sem dor. Uma criança a andar e que deixou o baloiço para vir às grades espreitar o cortejo. O baloiço lá ao fundo a oscilar levezas e a chamá-los em cada rotação de ferro no ferro, inh…inh…inh…inh... , o Zé Manel cobiçoso do balancé, armado em raposa displicente, precisa de óleo aquilo. Eles egípcios e pré-históricos, a andar em frente e a cabeça de perfil, a atenção toda lá atrás, a imaginarem-se no baloiço que ia de certeza quase até ao céu e onde a perspicácia infantil já tinha regressado em rituais de posse e demarcação de território. A professora, virem-se para a frente, ainda caem uns em cima dos outros, e retornaram à função, o sonho na beira do caminho dormente de sol,  quem sabe na volta.... Talvez então pudessem pegar-lhe mais um pouco, continuá-lo.
 Depois do que lhes pareceu uma subida íngreme, ouviram a voz do Tóino, estamos a entrar na vila, olhem ali a placa. E todos, ao passar, leram o nome em voz baixa. Contentes por saberem ler; orgulhosos de verem e serem vistos por outra gente; satisfeitos das batas lavadas, da brilhantina dos pais a empastar, das travessas e meias arrebanhadas em casa e agora sem timoneiro,  a desgovernar cabelo e pernas.
Então, a professora, enquanto a caixa mudava de mãos, deu o último aviso, Ai de quem se portar mal. Amanhã toda a gente vai falar dos meus alunos que vieram a pé desde a aldeia, a acompanhar um anjinho. Ai de quem se arme em engraçado – e a exibir infiltrações de detective - Não se esqueçam que eu sei sempre tudo. E os garotos fecharam-se em sisudez, na suposição de que a professora conhecia toda a gente que despovoava cafés e lojas para ver passar o anjinho, os passos deles a reluzirem no silêncio respeitoso da rua: homens a aglomerar, chapéu mole e boné na mão; mais além um ou outro senhor de óculos escuros e fato que parecia preparado para um casamento, mas só viera a tomar café; taxistas perplexos, a esconderem na mão direita o pano do lustro; donas de casa de pé chato, embasbacadas, a rama das hortaliças que espreitava nas alcofas, a emurchecer; crianças de chupeta, bracinhos no ar, em satisfação de pontapés nos carrinhos empurrados por avós e criadas orgulhosas. E eles sérios. Compenetrados. Certos de serem peça fundamental no quadro. Então, um murmúrio subiu não se sabe de onde, estamos a chegar ao cemitério, já se vê o muro. E os garotos cansados de andar, encalorados da soalheira, fartos de ver e serem vistos, surdinaram em admiração, então aquilo é uma casa?! E a Luzia, canudos meio desmanchados, a testa suada da palha do chapéu, a espevitar, a minha mãe diz que não tem telhado. A Laura contente de si, desligada da morte ali à mão, ainda não tenho as meias rotas. A Conceição realista, o alcatrão só sai com petróleo e ainda temos de ir para casa.
À medida que avançavam as ruas iam esvaziando, cruzados apenas pelo vagar de um ou outro automóvel onde senhoras compungidas faziam o sinal da cruz. Depois, chegaram a um muro a que não se via fim e alguns homens a espreitar sobre ele, encavalitados nas bicicletas. Os rapazes, há treino da bola é por isso que estão aqui, quem me dera ir ver. Se o portão estiver aberto, espreitamos. Deitaram olho ao passar, mas do exíguo entreaberto enxergavam apenas a solidão barrenta de uma baliza com o seu guarda-redes; isolado da equipa, pareceu-lhes pequeno e sozinho, mais aborrecido da vida que eles.
Virado o muro,  entraram num largo em meia lua. Ao centro, escancarado, um portão alto, em ferro, rematado por setas. Então, a D. Vitória pôs o moxo da pausa. O senhor João aproximou-se, o desgosto da mãe a pesar-lhe a vida, e, contristado abeirou-se da outra gente enquanto ela ajoelhava de novo a abraçar a caixa, corroída da saudade que acompanha as perdas irremediáveis. E o Prior voltando-se, Chegámos ao cemitério, muito obrigado a todos. É aqui que vamos rezar e despedir-nos desta criança. – e apontando a largura  do portão - Ali dentro é para os pais, não é para os meninos da escola, as mulheres lá atrás a assentir de  cabeça. E os garotos à espreita do cemitério que nunca tinham visto nem iam franquear, a Laura logo à frente, que bem que a gente brincava ali às casinhas; olha aquelas pedras tão boas para a cantareira e têm jarrinhas com flores e tudo. A Conceição peremptória, és parva, por baixo daquelas pedras é só gente morta, não se brinca aqui e ninguém te deixa fazer jantarinhos…A outra convicta, aqui é que eu gostava de brincar… - e a dar de ombros – os mortos não se mexem. E ficaram as duas a admirar uma fila de casinhas pequenas que se via da entrada, sem lhe atinarem a serventia.
Depois, quando o prior entrou de rezar as orações fúnebres, a garota esqueceu o cemitério siderada com a expressão “entre os resplendores da luz perpétua”, a decidir que tinha de perguntar à mãe sobre a sua prima preferida no meio de uma oração com palavras difíceis.
A um sinal do prior, o pai e a mãe seguiram-no com o filho, ela numa inquietude aflita, eu queria-o pôr ao colo, como é que eu o vou deixar aqui ao sol e à chuva, ele tem medo de ficar sozinho, não me posso ir embora, tenho de ficar com ele…. E enquanto as gentes abriam alas,  as mulheres choravam-lhes o desgosto como se fora seu, sussurrando para lenços lacrimosos, só quem tem filhos é que sabe….
E quando os crescidos entraram e os garotos já pensavam no regresso, surgiu-lhes uma professora contente, agora vão para baixo na camioneta da carreira. Eu pago os bilhetes.  Respeitinho à D. Vitória, ouviram bem? Exultaram. A D. Vitória num desabafo murmurado aos joanetes, não era capaz de fazer outra vez o caminho.

À noite, em casa, todos contaram tudo. Um amontoado de notícias, cada um a enfatizar a sua participação e fortaleza. A Laura antes de dormir, ó mãe, chorei poucochinho, não foi? E a mãe, tínhamos que cortar as meias, filha, o sangue pegou-tas aos calcanhares – e ajeitando-lhe os cobertores – não faz mal que chores quando te dói. Olha Laura, tristes, tristes, são as lágrimas dos pais da Elisa. E ela, aquele menino está no céu não está? E a mãe, um sim inamovível. Depois, debruçando-se a beijá-la, dorme bem. Ela, mãe, gosto tanto de si, nunca morre pois não? A mãe a apagar a luz do quarto, a voz a destilar doçuras, dorme. E a Laura contente, pezinhos de mercurocromo, a sonhar com um menino de caracóis loiros que espreitava sorrisos por entre as nuvens. E quantas casinhas e jarras de flores misteriosas semeando o algodão em rama!


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