quinta-feira, 3 de abril de 2014

Os Anjos também Morrem IV

Não sabiam ainda o caminho louco do desgosto, carro desgovernado que pisa sem dó e a esmo; ignoravam-lhe o ser de erva ruim em comprimentos de raíz invasora. Mais tarde, o aguilhão da dor havia também de perfurá-los e lembrariam esse primeiro balbuciar só presente aos olhos, exterior. Postos em formatura, o espanto emudecia-os na atenção ao cicio das vizinhas que se perdia entre as mãos dadas, a mãe não está capaz de fazer o caminho a pé, já desmaiou e tudo. E um coro de tragédia retorquia em surdina, coitadinha, já nem tem forças para chorar.  Depois, olhos a errar pelo grupo, como que descuidados nas batas imaculadas das meninas ou a acertar no quadriculado dos rapazes, um anjinho tem que ser carregado por outros anjinhos; mas alguns são tão pequeninos, coitadinhos dos gaiatos. E a Laura a ouvi-las e a calçar-se muito depressa, um lenço da parceira sob o calcanhar, ai isto dói-me tanto
Entretanto, a D. Vitória, uma lágrima teimosa a escorrer sob os óculos que até parecia que tinha nascido dos aros, aproximou-se com a Elisa pela mão,   ela vai com vocês, e todos a quererem dar à mão ao vestidinho preto, eu, eu, eu, dá-me a mim a mão, se quiseres dá-ma antes a mim. A professora veio vindo do nada onde se escondera, a apertar o lenço sob o queixo, delicadeza de dedos na seda e, a Elisa dá a mão à parceira –. Avançou um braço e trouxe o vestidinho preto pelo ombro, até ao lugar; a parceira a sorrir a medo sem saber se sorrir seria demais para quem tinha a morte em casa, o braço branco a cruzar o preto e a trazê-la ao exacto da forma. A seguir, desceu o braço dado a puxar-lhe os dedos para os seus e a entrelaçá-los fechando-os com a mão livre, um a um, sobre a sua mão, como tanta vez tinham feito, num pacto de união silenciosa. E a boca da Elisa, tão pequenina no meio do preto, entreabriu a mostrar os dentes de leite. Então a notícia do sorriso correu de uns a outros, a confortá-los, a Elisa riu-se para a parceira. E aliviaram, já tinham feito uma coisa boa. 
D. Maria dos Anjos, alheada das entrelinhas, mirava-os a comparar cabeças, Vou escolher os primeiros a pegar no caixão; lá à frente, paramos e vão outros. Se alguém não quiser, diga. Porém, desconhecendo o que era um morto ou um caixão, ou talvez mais por isso, todos queriam e, sim minha senhora, sim minha senhora, os rapazes a endireitarem argúcias na tentativa de inaugurar a experiência. Anteviam-se em gabarolice, fui o primeiro e não tive medo nenhum. A professora separou quatro e refez a forma, venham atrás de mim. E entrou com eles em casa. D. Vitória, que desfiava distraídas contas de um terço a que só por bom comportamento os garotos tinham acesso, ter-se-á  lembrado de alguma coisa porque se moveu em pressas de passinhos desasados nos seus sapatos-barco e fechou o cortejo da professora. Então, as vizinhas disseram umas às outras, vai sair, e prestes fecharam portas, um olhar rápido aos cacaréus da rua, a esconder sob as flores isto e aquilo que julgavam de valor e ninguém quereria. E os garotos da escola, olhos pregados na porta. Em espera.
A primeira a voltar foi a D. Vitória. Eles espantados, uns para os outros, ela traz um moxo para quê?! Nenhum sabia. Disseram-se surdamente, ela é que é esperta, é para se sentar de vez em quando, que custa muito a andar, coitadinha. Em seguida, o pai da Elisa com uma caixa branca comprida e uma mulher toda deitada sobre ela, agarrada às pegas amarelas e a repisar a premência de parar o tempo, não mo tires, não mo tires, não me faças isso, dá-me só mais um  bocadinho com ele. Então, a D. Vitória colocou o moxo no chão da rua e o pai da Elisa poisou-a. A mulher ajoelhou abraçada àquele volume branco a murmurar nomes pequenos de, meu queridinho, meu queridinho..., a Elisa correu para ela num repente, esquecida da forma, e toda a gente a fungar. Até que o homem se baixou, agarrou a mulher com os dois braços, levantou-a em peso e ela entornou a escorrer o desgosto por cima dele, como um cobertor ou um alforge que se põe às costas a pingar. Porém, à voz da professora, cada um pega numa asa, ela num pedido só de lábios a mexer, não. Esperem…. Desprendeu-se do amplexo, ajoelhou de novo à beira da caixa com desenhos dourados, tirou a tampa com cuidado, pôs a mão dentro dela que parecia que queria lá deixá-la e disse num sussurro quase inaudível, levem-no assim, que ele gosta tanto de rua. E desfaleceu.

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