quarta-feira, 27 de maio de 2015

Volantes Que Me Fazem O Ser

A mente é a decoradora oficial da vida e arruma o material que possui da forma que mais lhe apraz. Diligente e criativa, nem sempre se mostra prazenteira ou copia o que os sentidos oferecem. Não é máquina e a reprodução desinteressa-lhe. Antes, se dada ao drama, constrói quadros medonhos e terríficos onde o sujeito que a possui se enterra a contragosto, por maldosa inflexão do destino, qual Branca de Neve perdida no breu da floresta. Ou, ao invés, perde-se em castelos nebulosos e fantásticos, nuvens de sonho evaporado, origem de alguns trambolhões.
Contudo, penso por vezes na bênção que é a mente não se conformar à realidade, conceito que tanta moição tem dado aos pensadores. E acredito que haja mesmo várias realidades e que a imaginária faça parte de tal conjunto. Mais, acredito que ela é a fotossíntese humana. Uma coisa assim de pureza e respiração essencial que embeleza o mundo e lhe dá forma. Porque até a realidade sensível tem seu quê de imaginário e pessoal. De mental. É verdade que o mundo excede quaisquer palavras que o queiram dizer. Mas o certo é que nenhum olhar é objectivo.
Ora, pelo visto, sempre sacrifiquei no altar da subjectividade. Porque, se penso no meu bólide iniciático, não me surge aquele para que, mês a mês, pus de lado uma soma e ajudei a comprar. Esse, ganhou perfil de vestal. O primeiro automóvel nunca foi meu e continua, na minha mente, o mais bonito que já vi. Porém, apareceu-me  entrelaçado noutros acidentes. Por exemplo, foi siamês do primeiro herói, o seu condutor, pois claro. Confirmo que já tive uma quantidade razoável e bem variada de heróis. O que se aguentou mais tempo foi Lech Walesa que arrisca ser destronado pelo papa Francisco se for o caso de sua santidade não estar muito virado para a morte e apostar na longevidade. É verdade que, em Portugal, tenho um fraco por Sobrinho Simões, mas ainda não subiu os degraus da heroicidade. Portanto…
 E posto isto, manda a verdade dizer que o meu primeiro herói também foi o meu primeiro namorado. A afirmação é dele, que sou uma tímida desgraçada e nunca me teria lembrado de namorar com o motorista fardado de duas senhoras que, para mim e toda a gente da minha terra, eram, em idêntica proporção, muito muito ricas e dadas à fé católica. Acrescente-se que eu tinha quatro ou cinco anos e ele era um homem a meus olhos cheio de qualidades: bonito e bem penteado; tinha um boné lindíssimo e com pala; abria e fechava a porta do automóvel a todos que entrassem; guiava sempre muito direito. Além disso, conversava bastante com ele e  cantava tudo que me aprouvesse. No entretanto, as ditas senhoras e a minha mãe salvavam o mundo a poder de reuniões, terços e missas. Acrescente-se que o senhor  ainda me deixava mirar na carroçaria espelhada daquela maravilha negra. Era um namorado dos valentes. Quando contei às minhas amigas, elas invejaram-me e pediram se também podiam ir ver-se reflectidas. E depois lá ficámos as três feitas pata-chocas, a fazer mitetes frente ao carro e sem ordem de lhe pôr um dedo que fosse, enquanto ele limpava sabe Deus o quê que aquilo não tinha um grão de poeira. Uma vez, o namorado sentou-me ao colo e deixou-me guiar. Experiência que não me entusiasmou nem deu especial alento. Este namoro durou pouquíssimo porque me aborreci de ter um namorado que não me conhecia fora do tempo em que as patroas seguravam o mundo nas mãos. É que passava por mim, chamava-o pelo nome e toda alegre, e era como se eu não existisse. Ingrato.

Os volantes sempre me foram fontes de problemas. Até nos carrinhos da feira. Mas isso fica para quando. E Deus queira que quando seja já amanhã. Que exíguo o querer do homem! Vai de um a outro dia a tremelicar, opado de receios. Aguardemos.

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