quarta-feira, 20 de maio de 2015

Volantes Que Me Fazem O Ser

Bom, em tudo pus “a pata na poça” quando comecei a guiar. Então, vivia na quinta de meu pai e aproveitava para levar o garoto mais velho à escola o que lhe punha no rostinho de arcanjo - era um diabinho - um orgulho sorridente e sem medida que não o inibia de me avisar, ó mãe, já estás outra vez na terra do Artur Roxo. Eu, atarantada, a enxotar uma abelha e a abrir o vidro já quase em cima da leira de couves do vizinho, mas como é que eu saí da estrada, vínhamos tão bem…
Por certo alguém terá presenciado estas cenas rocambolescas em que a preocupação me consumia por inteiro. Na minha mente apenas cabíamos nós dois e o automóvel libertino, a poeira a levantar em nuvem cinzenta. E o garoto satisfeitíssimo dos solavancos de atravessar valas e valados, a fazer uns barulhos de garganta, aaaaaaaaaaaa…., todos quebrados pelo desnível. E por fim lá conseguia encarreirar de novo no caminho de terra, a abelha zunindo em liberdade, a mulher amalucou. E o meu filho grandioso, sentado no banco de trás, bem a meio,  uma mão em cada espaldar dianteiro, e a sua vozinha agora isenta de solavancos,  aaaaaaaa….. Eu chegava à escola acrescentada de duas rodelas de suor na blusa e mais cansada do que se tivesse fugido a um touro desembolado. Mas o meu loirinho de coro, antes de desatar a correr para o pátio, dava-me um beijo tão grato e alegre  que a azelhice me soava quase normal. E dos regressos solitários não recordo um átomo.
Ora eu comecei a guiar num princípio de Verão. Mas quando o Outono se apresentou ao serviço,  logo os dias encolheram e a luz foi apoucando. Certa tarde, saí do trabalho e, pela primeira vez, era noite. Porém, o anoitecer é pormenor em que não se pensa quando porfiamos esforços e suspendemos o mundo no intuito de conservar um veículo dentro da faixa de rodagem. Como tinha estacionado perto de um candeeiro de rua, arranquei sem medos extravasados. Entretanto, reparei que me parecia tudo mais escuro do que habitualmente, mas, hélas, não entendi porquê e julguei que precisava mudar as lentes, dedução assaz natural em quem calça inadvertidos sapatos sem parentesco e de altura diversa, gastando o dia a afirmar que piorou do esqueleto. 
Mas voltemos à história. A certa altura do percurso, de um momento para o outro, fiquei sem ver. É que não enxergava nada, nem as linhas que definiam a estrada. Pestanejei repetidamente julgando-me portadora de defeito, mas continuei igual, um breu de morte e o meu pé reticente e estupefacto a abrandar no acelerador. Neste impasse de parvoíce percebi – finalmente - que era noite e os candeeiros à beira da estrada tinham terminado. Aí, paniquei de todo e desatei a mexer nas luzes ao acaso - eu sabia lá como é que se acendiam – e por qualquer razão liguei os máximos; e, pela mesma razão, que ainda hoje não sei qual fosse, ou seguia em máximos ou na escuridão mais absoluta; não encontrei os médios nem os mínimos senão no dia seguinte e estou em crer que tinham saído a fazer um recado ou espairecer. Resultado: toda a gente com quem me cruzei me ligou também os máximos. Então, fiz os três quilómetros que faltavam a rezar para não me cruzar com ninguém – mas Deus comigo é assim, olha demasiado para o outro lado – e segui em máximos. Se vinha alguém em sentido contrário, desligava-os e ficava na escuridão para não encandear os outros condutores. E, em resposta, eles, pensando que eu me esquecera de ligar as luzes, acendiam-me os máximos. Foi uma viagem extraordinária. Sendo honesta com Deus: tem-me protegido qb. Pensando melhor: quando guio, está mesmo muito atento, sou um perigo ambulante.
Outro factor que se salienta é o meu desconhecimento quase absoluto em relação à composição e estrutura automóvel, a mecânica da coisa, quero dizer. Não me perseguem curiosidades insistentes e nem alarvidades de botões me dão dores de cabeça . Na verdade navego no automóvel como qualquer terráqueo numa nave espacial. Fruto desta burra ignorância, os mistérios sucediam-se. Como daquela vez em que eu ouvia o barulho da automotora – a estrada é paralela à via férrea – mesmo atrás de mim, olhava o conta quilómetros e nem seguia muito depressa. Contudo, a automotora não me ultrapassava. Acelerei e ela ali, mesmo colada a mim, mas sem me ultrapassar. Por falta de coragem e receio de sair da estrada, não arrisquei olhar para trás. E a automotora sem desgrudar, persistente. Cheguei intrigadíssima ao café. Ainda era cedo e o dono estava à porta. Logo que me viu, levantou-se-lhe em automatismos um dedo ilógico e em riste, a apontar-me um pneu traseiro.

Afinal a automotora era apenas um pneu furado. Que foi para o galheiro porque fiz cinco quilómetros toda contente, a pensar num comboio que não conseguia ultrapassar-me. Fixe.

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