As
patetices que vivo com o automóvel só têm fim na morte: minha, dele, ou nossa, que
não se me dava morrermos juntos, gosto mais dele que de muita gente. Continuo
uma naba ao volante e já me aconteceu quase tudo exceptuando acidentes de
grande monta.
É
claro que, no dia seguinte ao exame, pretendia ir a guiar para o trabalho.
Redondo engano. Apercebi-me dias depois que sabia conduzir um único veículo, o
da condução e, se fora a desejo meu, não tardaria a fazer negócio com o dono da
escola de instrução. Ok, o carro tinha dois volantes, e depois?! Nada se comparava à
confiança que sentia quando nele me sentava. Verifico hoje, com alguma
apreensão, que os anos pouco mudaram o meu carácter. Na premência dos factos, as
minhas respostas continuam uma falta de juízo pegada: um dos meus filhos à beira de nascer e eu a prometer
a um deus que, a existir, muito se terá divertido, que carregava para sempre
aquele barrigão, queria lá saber da criança não nascer, livrar-me da dor é que
era importante. Parecia-me um bom contrato, mas escusei de fazer vestidos que
empatavam metros e metros de tecido (é verdade, no meio de tanta dor, a
passar-me de solidão e sofrimento – as aflições apanham-nos sempre sozinhos -,
e ainda me demorei a ponderar a carestia
da roupa).
Voltando
ao tema: durante a instrução julgava que tinha problemas com os pedais. Mas só
julgava. Quando, a uma travagem diabólica, o meu filho saltou na cadeirinha do banco
traseiro (é verdade que ele se tinha desatado, mas a anatomia das cadeiras de
bebé prevê essa situação, portanto…) e me aterrou no colo, vi claramente visto,
que o meu problema era sério. E de imediato me sobreveio uma carga de remorsos
e de lágrimas que mais assustou a criança. Então, numa daquelas minhas decisões
radicais, resolvi deixar o volante em paz e dediquei-me com afinco aos
transportes públicos. Durante uns anos continuei a invejar o descanso e despudor
de toda a gente que passava descontraída e ao volante, mas, no fundo mais fundo,
achava-me estúpida por ter carta e não guiar.
Ora,
uma das minhas amigas – por sinal a que usa o mesmo diminutivo que eu –
convenceu-me brandamente, a tentar de novo. E a sua brandura desinteressada emprestou-me a energia que faltava. Apenas nós duas (ela só dominava os volantes do
badmington). E, como em nenhuma altura apresentou sintomas de medo – deixei o
carro ir abaixo várias vezes –, até consegui levá-la onde queria. Quando saiu
de minha casa carregava a promessa de que eu iria guiar todos os dias até ser
um ás do volante. Mas acontece que não voltou. Entretanto, aproveitou para
casar, ter dois filhos, ser uma senhora e isso. E eu, muito obediente, continuo
a guiar todos os dias. Ainda a espero. Satisfazia-me mesmo dar-lhe uma boleia
sem deixar o carro ir abaixo. Pergunto-me se a causa da sua ausência se
prenderá com a certeza intuída da minha inépcia….
Sem comentários:
Enviar um comentário