terça-feira, 5 de maio de 2015

Volantes Que Me Fazem O Ser

A Maxipush acompanhou-me as loucuras e os sonhos de juventude. Tempos de sem capacete e com ele – o meu capacete era uma relíquia mais conhecida por penico, que nem o meu pai queria na cabeça -, alguns trambolhões que eu tomava por conta e me faziam perder um ou outro salto das botas (não era muito agradável chegar a qualquer lado coxa), umas molhas valentes e pouco mais.  Este volante não me mudou o mundo, mas homogeneizou-me a indumentária: foi a era das calças. Vivemos uma ligação morna e desenxabida, meia cinzentona, que nunca chegou perto dos escaldanços apaixonados que a bicicleta me despertara. Porém, julgo que satisfez os inícios de veículo com motor do meu mano mais novo que lhe deitou no depósito óleo do motor de rega e nos fez apanhar um susto quando o vimos a descer a encosta envolto numa nuvem de fumo. Saímos do monte disparadas e demos com um limpa chaminés todo chamuscado e sorridente, não andava, não andava, e olha para isto. Mas logo ela engasgou, deu umas fungadelas e parou de todo.
Quando nasceu o meu primeiro filho, um menino jesus do mais bonito que imaginar se possa, que me deixou de boca aberta ao milagre de ter sido eu colaboradora em coisa tão perfeitinha, a acelera tornou-se intransitável e vendi-a a outra garota; depois, apliquei o rendimento numa pasta que conservo por falta de coragem para a liquidação total. Não voltei a ver o motociclo, deve ter falecido, que a idade já não lhe permitia grandes avarias.
            Entretanto, comecei a entender a necessidade da carta de condução de veículos ligeiros. Inscrevi-me, fui a uma aula de código só para saber como era, e, bem no limite do tempo, pedi o exame. Alguém me emprestara um livro de código. Estudei-o o inteiro de um domingo e a partir de segunda-feira fiquei apta a requerer aulas de condução. Na confusão de horários de trabalho e de transportes, e sobretudo devido ao meu desinteresse, quando fui a exame ainda me faltavam cinco lições.
Péssima a fazer o que exija destreza manual,  a condução foi um desastre. Porém, o instrutor ria pacatamente das minhas avarias: fechava os olhos se alguém atravessava à frente do carro e ele era obrigado a travar; sozinha, não conseguia manter o automóvel dentro da faixa de rodagem; suava a hora inteira e fartava-me de invejar os condutores que passavam por mim com ar de desanuviado passeio. Como é que eles podiam seguir tão descansados era-me mais misterioso que o intrincado ramoso de uma floresta virgem.
A verdade é que a automaticidade do hábito liberta. Mas a minha liberdade na condução era igual a zero. Ou seja, em mim, hábitos de condutor, igual a menos um. Assumia que a função incluía um número excessivo de tarefas que, aplicado a moi même, parecia incumprível. Era-me exigido um controlo paradoxal sobre o veículo: atenção dos pés aos pedais e suas funções (e eram logo três); atenção aos espelhos (também três); atenção à faixa de rodagem, local onde me parecia sempre que se sentia mal, não cabia, desejava qualquer outro lugar. Mas é que me deparei com quatro pneus desobedientes e um volante que supostamente os controlava e que várias vezes pensei avariado. E depois era do contra o desgraçado do automóvel, mal eu guinava, inflectia para o lado oposto ao pretendido. Resumindo, conduzir era o inferno, uma luta insana que me transformava na perdedora de serviço. Portanto, ou o carro estava possuído ou eu não dava uma para a caixa (não dava uma para a caixa). Mas também é verdade que o tamanho da máquina me assustava. Saliente-se ainda que, em maquinaria, a minha amplitude era escassa, ia do aspirador à máquina de lavar roupa, sem paragens intermédias.
Há muito que conhecia o meu problema de lateralidade, mas foi nas aulas de condução que o li por extenso, o instrutor mandava virar à esquerda e eu virava à direita, falava no pedal da esquerda e eu calcava o oposto. Uma alegria. 
Apenas com tempo para uma aula semanal, fiz de novo exame no limite e não aprendi (nem me ensinaram) a ouvir e conhecer o ralenti do motor. Ainda hoje não sei que raio é isso de ponto de embraiagem, mas acredito que seja um ponto fixe se bem que não tão bonito como o ponto pé de flor, nomenclatura de recorte delicado e que aprecio, uma vez que aquela linhazita fininha, apesar de bordada, também não tem grande graça. Quando, em véspera de exame,  frisei as falhas ao instrutor, ele abriu um sorriso e, não se preocupe, os carros da condução estão acelerados e não vai deixar o carro ir abaixo. E confiei. Desconfiando.

Posto isto, enchi-me de nervos no exame prático, descarreguei no avaliador quase o livro de código inteiro  sem que ele dissesse água vai, mas, e contra factos não há argumentos, passei. E não é que as duas asneiras que fiz foram mesmo deixar o carro ir abaixo?!
(continua)

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