Por
vezes, ando tão perdida de mim que não leio, não escrevo e pouco penso. Talvez
aconteça assim com toda a gente e seja um modo de “descansar de ser pessoa” o situarmo-nos
entre o animal e a máquina. Nesses momentos, por paradoxal que possa parecer,
se escrevo, apetecem-me textos risonhos e só me lembro das minhas imensas
palermices cujas me acodem em catadupa, génese de alguns dos textos mais bem
dispostos aqui presentes. E mesmo da iniciativa do blogue. Hoje vieram-me à
memória as barbaridades que já vivi com veículos automóveis.
Para
ser mais exacta, começaram nos veículos de duas rodas. Há-de andar lá para trás
a minha aventura no aprendizado da bicicleta a pedal, que fez história. Mas o
certo é que viajei durante quatro anos sem carta de condução ou documentos do
veículo, apêndices que o meu pai achava de somenos importância e que me levaram a
treinar a arte da fuga para me subtrair às multas que ele afirmava não pagar,
se levares uma multa encostas a bicicleta e vais a pé para a escola. Assim, se lobrigava um
ou dois agentes da autoridade, enfileirava para qualquer casa a pedir desculpa
aos proprietários e explicando razões de mão no travão. Fartava-me de suar frio
sem que o meu pai se comovesse. Posso dizer que me safei com êxito, nunca fui
multada. Bom, uma vez seguia sozinha e caí mesmo atrás do guarda, assustou-me vê-lo de repente. Mas não se mexeu e até me pareceu
vê-lo sorrir quando o contornei de bicicleta à mão. E de outra vez, sem darmos conta, também se nos plantaram dois na
frente a exigir os papéis. A minha colega tirou os documentos dum saquinho que trazia atado ao cromado do guiador e eu comecei a desatar os elásticos
do suporte da bicicleta, preparada para a multa. O guarda olhou com muita
atenção os documentos dela, entregou-lhos e, podem seguir. Mas eu tremia tanto
que nem consegui força para puxar e reatar os elásticos sobre a carga de livros – o guarda acabou por ajudar-me -, almoço e o mais que tanto me pesava em manhãs de atraso. Nesse momento de descompressão, bem no íntimo, punha em dúvida a habilidade dos meus pés, duvidava que soubesse dar aos pedais. Mas consegui e rápidas e silenciosas, pedalámos para fora de vista. E fomos até casa a palrar, contentes da sorte.
Durante
o meu primeiro curso, em vésperas de ser professora primária – pensava eu que
em vésperas - a par de pensamentos de névoa, andei apaixonadíssima por uma
Diane. Mas o meu pai, ocupado com coisas sérias e também dramáticas – somos uma
família muito dada ao drama -, não estava nem aí para os meus gostos. De modo
que, a par de uma doença que me apanhou em final de curso e me fez repetir um
ano – ainda hei-de contá-la, convenço-me que seja interessante - o desejo da Diane morreu por si (diga-se que, com grande
pena minha).
Porém, mal comecei a trabalhar, a vida fez-me
entender que não podia comprar carro nenhum além dos de linhas. E pronto. Daí o meu amor a transportes públicos. Gosto um imenso do comboio em todas as
suas variantes e de eléctricos, ambiciono um dia passear naqueles autocarros
abertos na parte superior e onde os turistas me parecem sempre felizes. Qualquer
dia que me dê na bolha, vou brincar de ser feliz num deles, que também tenho
direito.
A
segunda fase de equilíbrio em duas rodas aconteceu quando o meu pai me
ofereceu, não a Diane mas a Maxipush. Saí do comboio, levou-me à oficina, disse que era minha e explicou-me
que era só acelerar. Num misto de surpresa e contentamento, montei-a, acelerei
e atravessei veredas, pinheiros e poças de água sem cair. O meu pai, que vinha
atrás de mim pensando em me apanhar de dentro de um charco de água salobra –
tinha chovido toda a semana – exultou. E no dia seguinte, agarrei nela e
levei-a para a Moita do Ribatejo; a falar verdade, ela é que me levou.
Na
segunda-feira de manhã, quando os meus alunos me viram chegar na acelera, deram
vivas como se lhes tivesse saído a sorte grande. Por norma, fazia a pé os 4 km
e eles iam esperar-me ao caminho e depois eu vinha a cantar canções que sabia
do meu tempo de estudante e que os encantavam nem sei bem porquê. Claro que, de Inverno, chegava completamente gelada, as mãos sem arte. E eram eles quem me
parava a acelera e ma punham no descanso na parte de trás do pátio; faziam-no à
vez, sem brigas e empurrões. Tenho a certeza que não me esqueceram. Gostámos
tanto uns dos outros que me parece excessivo um amor assim. Hoje, não consigo
impedir a impressão de que lhes dificultei a vida no ano seguinte quando mudei de escola. Porque todo
o direito tem seu avesso.
(continua)
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