segunda-feira, 4 de maio de 2015

Volantes Que Me Fazem O Ser

Por vezes, ando tão perdida de mim que não leio, não escrevo e pouco penso. Talvez aconteça assim com toda a gente e seja um modo de “descansar de ser pessoa” o situarmo-nos entre o animal e a máquina. Nesses momentos, por paradoxal que possa parecer, se escrevo, apetecem-me textos risonhos e só me lembro das minhas imensas palermices cujas me acodem em catadupa, génese de alguns dos textos mais bem dispostos aqui presentes. E mesmo da iniciativa do blogue. Hoje vieram-me à memória as barbaridades que já vivi com veículos automóveis.
Para ser mais exacta, começaram nos veículos de duas rodas. Há-de andar lá para trás a minha aventura no aprendizado da bicicleta a pedal, que fez história. Mas o certo é que viajei durante quatro anos sem carta de condução ou documentos do veículo, apêndices que o meu pai achava de somenos importância e que me levaram a treinar a arte da fuga para me subtrair às multas que ele afirmava não pagar, se levares uma multa encostas a bicicleta e vais a pé para a escola. Assim, se lobrigava um ou dois agentes da autoridade, enfileirava para qualquer casa a pedir desculpa aos proprietários e explicando razões de mão no travão. Fartava-me de suar frio sem que o meu pai se comovesse. Posso dizer que me safei com êxito, nunca fui multada. Bom, uma vez seguia sozinha e caí mesmo atrás do guarda, assustou-me vê-lo de repente. Mas não se mexeu e até me pareceu vê-lo sorrir quando o contornei de bicicleta à mão. E de outra vez, sem darmos conta, também se nos plantaram dois na frente a exigir os papéis. A minha colega tirou os documentos dum saquinho que trazia atado ao cromado do guiador  e eu comecei a desatar os elásticos do suporte da bicicleta, preparada para a multa. O guarda olhou com muita atenção os documentos dela, entregou-lhos e, podem seguir. Mas eu tremia tanto que nem consegui força para puxar e reatar os elásticos sobre a carga de livros – o guarda acabou por ajudar-me -, almoço e o mais que tanto me pesava em manhãs  de atraso. Nesse momento de descompressão, bem no íntimo, punha em dúvida a habilidade dos meus pés, duvidava que soubesse dar aos pedais. Mas consegui e rápidas e silenciosas, pedalámos para fora de vista. E fomos até casa a palrar, contentes da sorte.
Durante o meu primeiro curso, em vésperas de ser professora primária – pensava eu que em vésperas - a par de pensamentos de névoa, andei apaixonadíssima por uma Diane. Mas o meu pai, ocupado com coisas sérias e também dramáticas – somos uma família muito dada ao drama -, não estava nem aí para os meus gostos. De modo que, a par de uma doença que me apanhou em final de curso e me fez repetir um ano – ainda hei-de contá-la, convenço-me que seja interessante -  o desejo da Diane morreu por si (diga-se que, com grande pena minha).
 Porém, mal comecei a trabalhar, a vida fez-me entender que não podia comprar carro nenhum além dos de linhas. E pronto. Daí o meu amor a transportes públicos. Gosto um imenso do comboio em todas as suas variantes e de eléctricos, ambiciono um dia passear naqueles autocarros abertos na parte superior e onde os turistas me parecem sempre felizes. Qualquer dia que me dê na bolha, vou brincar de ser feliz num deles, que também tenho direito.
A segunda fase de equilíbrio em duas rodas aconteceu quando o meu pai me ofereceu, não a Diane mas a Maxipush. Saí do comboio, levou-me  à oficina, disse que era minha e explicou-me que era só acelerar. Num misto de surpresa e contentamento, montei-a, acelerei e atravessei veredas, pinheiros e poças de água sem cair. O meu pai, que vinha atrás de mim pensando em me apanhar de dentro de um charco de água salobra – tinha chovido toda a semana – exultou. E no dia seguinte, agarrei nela e levei-a para a Moita do Ribatejo; a falar verdade, ela é que me levou.
Na segunda-feira de manhã, quando os meus alunos me viram chegar na acelera, deram vivas como se lhes tivesse saído a sorte grande. Por norma, fazia a pé os 4 km e eles iam esperar-me ao caminho e depois eu vinha a cantar canções que sabia do meu tempo de estudante e que os encantavam nem sei bem porquê. Claro que, de Inverno, chegava completamente gelada, as mãos sem arte. E eram eles quem me parava a acelera e ma punham no descanso na parte de trás do pátio; faziam-no à vez, sem brigas e empurrões. Tenho a certeza que não me esqueceram. Gostámos tanto uns dos outros que me parece excessivo um amor assim. Hoje, não consigo impedir a impressão de que lhes dificultei a vida no ano seguinte quando mudei de escola. Porque todo o direito tem seu avesso.

(continua)

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