É
difícil desenvencilharmo-nos da vida que deixamos. Mudamos de ares e ainda nos
alapam problemas, pessoas, situações. Nós a enxotá-los, xô, xô, quero ver a
paisagem. E eles a plantarem-se na memória aos mitetes, existimos, existimos,
nhanhanhanhanha. Lugares diferentes convidam a arrumar bagagem mental, a dobrar os
problemas pelos vincos e pendurar, a envolver as pessoas em capas protectoras e
correr o zip, a pôr em époché uma ou
outra situação. Entretanto, as descobertas vão ganhando espaço. Daí não ser
razoável permanecer apenas um dia na cidade que se pretende conhecer. Ainda que
o conhecimento seja uma pretensão do espírito que não coaduna, um desejo assimétrico
com a realidade. Por norma, nem as coisas conhecemos por inteiro. Não nos damos
ao trabalho, são de somenos. Seres inanimados. Seriam, se conseguíssemos
empenhar-nos nas pessoas. Mas também não. Somos volúveis e voláteis, enjoamos a
compreensão fatigosa. Desagrada-nos o impenetrável de cada um. Se muito
misterioso, entregamos os pontos. Aos animais não queremos compreendê-los,
queremos que eles nos compreendam e nos sirvam o seu prato de fidelidade. Não
existe pretensão mais descabida. Mas esta é outra guerra. Voltemos à augusta
Bracara.
Ao
segundo dia, a estranheza evapora. O banho esfuma sono, suor, lembranças torcidas. E o pequeno almoço sintoniza-nos. A cidade já se insinuou e criamos a ilusão de
visita que pertence. Para trás fica o apalpar de terreno. Hoje, o corpo voga
sem paragens bruscas ou reticências de volta atrás. A mente despe-se de teias, determina-se.
Revemos ruas como velhas conhecidas,
largos onde podíamos ter jogado ao lencinho da botica, mas que só conhecemos um
dia antes e de mapa na mão. À luz da manhã, Braga é cidade que apetece. Detenho-me a apreciar uns atoalhados e não resisto a uma oferta antevendo
o soslaio dos meus príncipes, sim, tá bem. Mas os objectos ficam. Permanecem. Quem
sabe seja também por isso que os damos. Uma ânsia de presença. Coisa de pés
juntos que não arredam. Ou pode ser assim o amor.
E
deste entretém de gente a palpar maciezas em tons pastel, nos chegou o conselho
sobre o Palácio do Raio. Embora o nome lhe venha do segundo proprietário,
ajusta na perfeição: é uma luz de beleza a azular ao fundo da rua. E que
loucura possuiu Miguel José Raio, visconde talvez por obra da fortuna amealhada no Brasil, que luxou casa de tal teor emoldurada em rua condigna. Que mandou rasgar com o carinho de quem engasta jóia de valor. Braga é, em grande parte, barroca;
nesta casa, de um barroco lírico.
Fruto
de restauro recente, o solar oferece-se com o orgulho de mulher sedosa e
recamada, dona que muito tem e muito exige. A fachada é o seu vestido de tufos
e laços, rendas entrevistas, pérolas que serpenteiam por colo e pescoço,
bordados que assomam rente ao nácar que os decotes limitam. E tudo isto num
décor posto em dois andares de bom gosto. De ornatos assimétricos, marca do arquitecto André Soares. Dir-se-ia
que ele lhe deu o espírito e os proprietários o respeitaram
alindando. Porque os azulejos vieram depois; o embelezamento dos tectos e da
caixa de escadas; a porta de vidros coloridos que dá fim ao átrio. O visconde
Miguel tomou-se de amores pela casa e vestiu-a condignamente, laço aqui, pérola acolá. Num amor
desvelado, como quem beija o pézito que calçou e espreita sob a saia. E ela posta
em seu donaire, senhora de belo porte.
Quem
a vê do exterior e lhe sobe os degraus até ao primeiro patamar onde o Turco nos espera de espada e luminária, compreende que, como em todas a beleza,
ali se harmonizam o dentro e o fora: a
parte central, interna e externa, é a que mais surpreende pelo bom gosto e
riqueza de pormenores heráldicos.
Pena
que não esteja mobilada. Pena que o seu ser mundano guarde tanto artefacto
sacro, tanta foto sisuda, tanta opa bordada...e até os antigos aparelhos da
medicina que ali houve e não quadram. Alguém decidiu sem a sentir ou gostar e não lhe
respeitou o espírito. Encolheu os ombros. Mudou de assunto.
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