domingo, 5 de junho de 2016

"No tempo da Escola"

Mas o último mês do ano ia ficar-nos na memória. Mercê de inesperados acontecimentos,  ainda hoje se apresenta em malha extensa e borbotada, sem dobras de plissado, um tecido grosso que se aguenta de pé e sobrevive a expensas próprias, cheio de si.
Talvez o mundo das crianças citadinas se teça com outras linhas, mas a nossa vida aldeã, imersa em irreflectida miséria comum, vivia de pormenores e pequenos acontecimentos: mudanças de casa, um passageiro que a carreira deixava na paragem, um chapéu de palha novo e com fita,  o carteiro a subir a um monte inesperado, uma gravata que sobressaía na camisa, um corte de cabelo fora de hábito, compra de maior vulto na mercearia. Coisas que hoje se perdem no quotidiano e, então, fosforeciam. Mas ninguém estava preparado para o ribombar que nos estremunhou na friúra de uma madrugada, internando-se até às fundações.
Certa noite, quando a aldeia gozava o sono pesado que antecede o acordar, fomos sacudidos por um trovão que nos pareceu despenhar directamente no chão, caindo a partir o mundo. Ouviu-se o som catastrófico de coisas a quebrar e sentimos, nítido, o arrepio da terra.  Quedei-me transida, esperando,  enquanto minha mãe saltou da cama em camisa, ai nossa senhora nos valha, e sem acender o candeeiro de petrólio começou a vestir-se e a enfiar os chinelos assegurando, aconteceu uma desgraça. Compreendi num rompante que ia sair de casa, enxotei o medo, dei um pulo da cama, aferrei-me à sua mão e corremos as duas porta fora. Na rua, o mundo começava a acinzentar e o dia espreitava em parto difícil.  Casas e vegetação dobravam-se ainda em manchas escurecidas sob a indiferença de estrelas sentadinhas e muito descansadas no firmamento. E os olhos de minha mãe a um lado e a outro, espreitando as sombras dos vizinhos a avultar. Juntando-se-lhes na beira de estrada deserta. E eu friorenta, a receber no mão a mão o cálido intravenoso de minha mãe. As vozes alvoroçadas e a meio tom, prenúncio de desgraça, o que foi, que estrondo foi aquele que até a minha cama tremeu, de que lado veio. Até que um vulto chegou correndo e largou a bomba, foi a casa que o Leão andava a fazer que caiu toda, está por terra. Apertei com força a mão de minha mãe e gemi aterrorizada, Lídia. A casa que o Leão construía destinava-se à irmã de Lídia e era contígua à casa da minha amiga. Desatámos a correr. Sombras negras na  paisagem descolorida. Eu corria de aflição, dava uma mão a minha mãe que me puxava e quase fazia voar enquanto com a outra segurava as calças do pijama por via do elástico relaxado. Apesar dos meus pés darem tudo que conseguiam e ficarem fora do chão algumas vezes, à medida que nos aproximávamos íamos ficando para trás, a minha mãe, não largues o cós das calças senão cais. E olhando-me, não tenhas medo, a tua amiga está bem, não lhe aconteceu nada, senão já sabíamos. Mas o meu coração batia descompassado da corrida e do susto, tinha que ver Lídia e certificar-me. Ainda desconhecia a história de S. Tomé e sua humana desconfiança, mas já lhe comungava o humano sentir. Na aragem desentraitada de Dezembro, minha mãe preocupava a derramar-me a doçura dos olhos, ó filha, vais apanhar uma constipação, então nem o casaco vestiste.
Ainda nem bem tínhamos chegado e já me desatava, já venho. E voei para a casa. À porta, um monte de gente cheia de conversa sussurrada aglomerava em sururu que voava baixo por via da hora, temendo espantar a apresentação do dia. Completamente despercebida, entrei pela porta da cozinha saltando tijolos, paus e pedras a esmo e estaquei abandonada de forças, o coração a descansar no novelo que me dava as costas, acocorado  junto à brevidade do  lume de chão. Com a adrenalina a descer súbita, as pernas fraquejavam à medida que tentava  aproximar-me dela. 

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