Mas o último mês do ano ia ficar-nos na memória. Mercê de inesperados
acontecimentos, ainda hoje se apresenta em malha extensa e
borbotada, sem dobras de plissado, um tecido grosso que se aguenta de pé e
sobrevive a expensas próprias, cheio de si.
Talvez o mundo das crianças citadinas se teça com outras linhas, mas a
nossa vida aldeã, imersa em irreflectida miséria comum, vivia de pormenores e
pequenos acontecimentos: mudanças de casa, um passageiro que a carreira deixava
na paragem, um chapéu de palha novo e com fita, o carteiro a subir a um monte inesperado, uma gravata que sobressaía na camisa, um corte de cabelo fora de hábito,
compra de maior vulto na mercearia. Coisas que hoje se perdem no quotidiano e,
então, fosforeciam. Mas ninguém estava preparado para o ribombar que
nos estremunhou na friúra de uma madrugada, internando-se até às fundações.
Certa noite, quando a aldeia gozava o sono pesado que antecede o acordar,
fomos sacudidos por um trovão que nos pareceu despenhar directamente no chão,
caindo a partir o mundo. Ouviu-se o som catastrófico de coisas a quebrar e
sentimos, nítido, o arrepio da terra. Quedei-me transida, esperando, enquanto
minha mãe saltou da cama em camisa, ai nossa senhora nos valha, e sem acender o
candeeiro de petrólio começou a vestir-se e a enfiar os chinelos assegurando,
aconteceu uma desgraça. Compreendi num rompante que ia sair de casa, enxotei o
medo, dei um pulo da cama, aferrei-me à sua mão e corremos as duas porta fora.
Na rua, o mundo começava a acinzentar e o dia espreitava em parto difícil. Casas
e vegetação dobravam-se ainda em manchas escurecidas sob a indiferença de
estrelas sentadinhas e muito descansadas no firmamento. E os olhos de minha mãe
a um lado e a outro, espreitando as sombras dos vizinhos a avultar.
Juntando-se-lhes na beira de estrada deserta. E eu friorenta, a receber no mão
a mão o cálido intravenoso de minha mãe. As vozes alvoroçadas e a meio tom,
prenúncio de desgraça, o que foi, que estrondo foi aquele que até a minha cama
tremeu, de que lado veio. Até que um vulto chegou correndo e largou a bomba,
foi a casa que o Leão andava a fazer que caiu toda, está por terra. Apertei com
força a mão de minha mãe e gemi aterrorizada, Lídia. A casa que o Leão
construía destinava-se à irmã de Lídia e era contígua à casa da minha amiga.
Desatámos a correr. Sombras negras na paisagem descolorida. Eu corria
de aflição, dava uma mão a minha mãe que me puxava e quase fazia voar enquanto
com a outra segurava as calças do pijama por via do elástico relaxado. Apesar
dos meus pés darem tudo que conseguiam e ficarem fora do chão algumas vezes, à
medida que nos aproximávamos íamos ficando para trás, a minha mãe, não largues
o cós das calças senão cais. E olhando-me, não tenhas medo, a tua amiga está
bem, não lhe aconteceu nada, senão já sabíamos. Mas o meu coração batia
descompassado da corrida e do susto, tinha que ver Lídia e certificar-me. Ainda
desconhecia a história de S. Tomé e sua humana desconfiança, mas já lhe
comungava o humano sentir. Na aragem desentraitada de Dezembro, minha mãe
preocupava a derramar-me a doçura dos olhos, ó filha, vais apanhar uma constipação,
então nem o casaco vestiste.
Ainda nem bem tínhamos chegado e já me desatava, já venho. E voei para a
casa. À porta, um monte de gente cheia de conversa sussurrada aglomerava em
sururu que voava baixo por via da hora, temendo espantar a apresentação do dia.
Completamente despercebida, entrei pela porta da cozinha saltando tijolos, paus
e pedras a esmo e estaquei abandonada de forças, o coração a descansar no
novelo que me dava as costas, acocorado junto à brevidade do lume
de chão. Com a adrenalina a descer súbita, as pernas fraquejavam à medida que tentava aproximar-me
dela.
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