De
quando em quando, escrevo sobre os meus gatos. Que chegam insuspeitos. Alguém
os abandona por aqui, dão-mos sem que os espere, ou vêm pelo seu pé (patas,
patas) da casa dos vizinhos, cheios de força para ficar – perante esta eloquência
de veludo nasce-me o derriço e de imediato me pertencem.
Não é que sofra de paixão por gatos.
Não chega sequer a um amor banal, corriqueiro, daqueles que ninguém gostava de
ter, mas calha à maioria de nós. É mais uma “queda”, um olhar bom que lhes derramo.
Mas pagam-me tudo, os queridos gatos.
Gosto deles por serem animais
silenciosos. Acompanham sem chatear. Além disso, por deformação profissional,
admiro que aprendam depressa. Os gatos, prestes se habituam à higiene que nos convém.
A gente esmurra-lhes o focinho no chichi e eles não voltam a fazer nada em
casa. Nem precisamos esmurrar com força, mas é preciso que se sujem um
bocadinho, detestam o mau cheiro e a sujidade, ficam mesmo ofendidos.
Mas esta gata leva-me à certa. É
pachorrenta, pacata e tem olho azul. Acho-a magnífica, mas nem por isso é muito
bonita e na verdade parece muda. Só para o essencial se lembra que tem voz e
mia levemente, como a dar-me um toque de cotovelo. Se quer ir à rua e a porta de casa está
cerrada, oiço-a a miar baixinho. E, se
não lhe faço caso, vem para junto de mim e queda-se a olhar-me
perplexa, numa admiração vidrada e azul onde paira um ar de
repreensão que me embaraça deveras. Na
sua euforia de caçadora – que não é excessiva, já tive gatos que rilhavam o
dente à vista de uma mosca -, traz-me lagartixas desrabadas e mortas; pássaros
ainda a estrebuchar nos dentes aferrados que, conhecedora dos meus gostos, me mostra
já a dar meia volta; silenciosas folhas secas com que engraça e deposita no chão da cozinha. E pouco mais. Nos dias de
caça leio-lhe nos olhos um desdém de ironia fina, um “palerma, eu a dar-te uma
prenda e tu a mandares-me embora”. Por via deste pendor gatil, sentei-a no colo e expliquei com calma
que as minhas prendas são livros, flores, viagens, lembranças trazidas delas,
almoços, lanches e companhia de quem gosto...olhou-me em silêncio, a tentar
entender a razão de um pássaro ou uma lagartixa estarem fora do rol. Penso que
não compreendeu. Num instante, alçou o rabo e foi embora.
Contudo,o céu da minha gata é andar
na rua comigo (arrisco que com alguém de confiança, mas prefiro dizer comigo
como se só para mim, que sei que não). Salta; sobe muros, trepadeiras e árvores, numa alegria esfuziante e de corpo inteiro; deita-se no chão para uma
festa de que muita vez me distraio; corre na frente e volta atrás a esfregar-se
nas pernas e quase me faz cair. Atoleima, a gatita. Quando enigmática se arruma
no parapeito da janela, conversamos (eu converso) e olha-me em silêncio como se
entenda. Mas não deve. Termino a pedir-lhe com toda a confiança, dá um beijo à
dona. E fixa-me de olhos hipnóticos, como se em mim o mundo inteiro e arredores
e não haja mais que ver. Mas nem um
músculo de esforço. Se se esgueirasse um nico, esticasse o pescoço...
A minha gata macia e independente
que encolhe as garras e me toca de pantufas. É prazer da mão deslizar-lhe o
corpo. Passa horas por aí e, à chegada, cruza a calma do portão com donaire peculiar, ao modo
de quem cumpriu e descansou de recados. Beijo-a de vez em quando – a ver se
aprende como é – e a anunciar, vou dar um beijinho à gata. Ela estaca ao
cumprimento e olha-me em profundeza toldada de inexplicável.
Um
dia a gata surpreende-me e estica o pescoço. Aposto que.
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