sexta-feira, 24 de junho de 2016

A Gata que é minha e não é

De quando em quando, escrevo sobre os meus gatos. Que chegam insuspeitos. Alguém os abandona por aqui, dão-mos sem que os espere, ou vêm pelo seu pé (patas, patas) da casa dos vizinhos, cheios de força para ficar – perante esta eloquência de veludo nasce-me o  derriço e  de imediato me pertencem.
            Não é que sofra de paixão por gatos. Não chega sequer a um amor banal, corriqueiro, daqueles que ninguém gostava de ter, mas calha à maioria de nós. É mais uma “queda”, um olhar bom que lhes derramo. Mas pagam-me tudo, os queridos gatos.
            Gosto deles por serem animais silenciosos. Acompanham sem chatear. Além disso, por deformação profissional, admiro que aprendam depressa. Os gatos, prestes se habituam à higiene que nos convém. A gente esmurra-lhes o focinho no chichi e eles não voltam a fazer nada em casa. Nem precisamos esmurrar com força, mas é preciso que se sujem um bocadinho, detestam o mau cheiro e a sujidade, ficam mesmo ofendidos.
            Mas esta gata leva-me à certa. É pachorrenta, pacata e tem olho azul. Acho-a magnífica, mas nem por isso é muito bonita e na verdade parece muda. Só para o essencial se lembra que tem voz e mia levemente, como a dar-me um toque de cotovelo.  Se quer ir à rua e a porta de casa está cerrada, oiço-a a miar baixinho.  E, se não lhe faço caso, vem para junto de mim e queda-se a olhar-me perplexa, numa admiração vidrada e azul onde paira um ar de repreensão que me  embaraça deveras. Na sua euforia de caçadora – que não é excessiva, já tive gatos que rilhavam o dente à vista de uma mosca -, traz-me lagartixas desrabadas e mortas; pássaros ainda a estrebuchar nos dentes aferrados que, conhecedora dos meus gostos, me mostra já a dar meia volta; silenciosas folhas secas com que engraça e deposita no chão da cozinha. E pouco mais. Nos dias de caça leio-lhe nos olhos um desdém de ironia fina, um “palerma, eu a dar-te uma prenda e tu a mandares-me embora”. Por via deste pendor gatil, sentei-a no colo e expliquei com calma que as minhas prendas são livros, flores, viagens, lembranças trazidas delas, almoços, lanches e companhia de quem gosto...olhou-me em silêncio, a tentar entender a razão de um pássaro ou uma lagartixa estarem fora do rol. Penso que não compreendeu. Num instante, alçou o rabo e foi embora.
            Contudo,o céu da minha gata é andar na rua comigo (arrisco que com alguém de confiança, mas prefiro dizer comigo como se só para mim, que sei que não). Salta; sobe  muros, trepadeiras e árvores, numa alegria esfuziante e de corpo inteiro; deita-se no chão para uma festa de que muita vez me distraio; corre na frente e volta atrás a esfregar-se nas pernas e quase me faz cair. Atoleima, a gatita. Quando enigmática se arruma no parapeito da janela, conversamos (eu converso) e olha-me em silêncio como se entenda. Mas não deve. Termino a pedir-lhe com toda a confiança, dá um beijo à dona. E fixa-me de olhos hipnóticos, como se em mim o mundo inteiro e arredores e não haja mais que ver.  Mas nem um músculo de esforço. Se se esgueirasse um nico, esticasse o pescoço...
            A minha gata macia e independente que encolhe as garras e me toca de pantufas. É prazer da mão deslizar-lhe o corpo. Passa horas por aí e, à chegada, cruza a calma do portão com donaire peculiar, ao modo de quem cumpriu e descansou de recados. Beijo-a de vez em quando – a ver se aprende como é – e a anunciar, vou dar um beijinho à gata. Ela estaca ao cumprimento e olha-me em profundeza toldada de inexplicável.

Um dia a gata surpreende-me e estica o pescoço. Aposto que.

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