Os
comboios são fetiche de deserção. Duas rectas paralelas. Assim me pareciam
os carris deitados de atravesso sobre as traves de madeira que rescendiam. Mais
tarde, descobri serem infindáveis segmentos de recta. E por esta nomenclatura
me fiquei. Atordoada. Sem saber se os segmentos se diziam assim por serem
pequenas partes da infinita recta, ou se bastava haver neles princípio e fim. A
meus olhos de incógnita herdeira de Tomé o apóstolo, linhas a que não
via princípio ou fim não podiam ser segmentos. No entanto, por vezes, denoto já
um pendor para descrer nos sentidos, uma insinuação de dúvida (suponho que seja
velhice, que a filosofia nada conseguiu). Descrer dos sentidos é a autodefesa
dos velhos. Olhamos o espelho e, “a juventude de espírito é que interessa”; lemos
mal o título do filme e, “ não tem importância. Importa é a inteligência da
coisa e a história não nos escapa”. Ou
seja, já não apanhamos as legendas do mundo, mas fingimos que, para o compreender,
basta ver os bonecos. Até hoje ainda não entrevi a grande sabedoria dos velhos.
Ou então confundi-a com rabugice. Tenho que investigar, não é assunto encerrado
(ai de mim se for só rabugem).
Ora
mas eu quero mesmo é contar o passeio que fiz a Braga e começou numa linha de
comboio inodora, sem traves de madeira, mas ainda com carris (vá lá, que com
carris). No Alfa Pendular que não pendula, antes segue direitinho ao seu
destino, menino obediente a dar conta do recado. Mas cumpre o horário e
portanto o pendular está-lhe nas medidas. Pronto, é verdade que mal me sento no
comboio e ele começa a deslocar-se, me vem aquela certeza parva de que vou no
sentido inverso ao pretendido e me enganei na gare; acresce que não é provocado pelo
fenómeno de ver a paisagem andar, é mesmo o meu mapa mental que está sempre do
avesso. Mas o hábito já me desvaneceu o medo. Fica-me apenas a estranheza de ir
na linha do norte a pensar que vou para sul, a desconfiar que quando espero
Coimbra me sai Beja ou Cuba e que afinal desemboco em Faro e vou a banhos sem
ter onde aportar. Mas não. Mais clever
que eu, o maquinista passou Coimbra, Porto-Campanhã e ganhou Braga. Olhei
e o comboio todo se aperaltava para a estação, num conciliábulo de olhinhos que
não desgrudam, passo terno junto à gare. Ou a certeza de chave em fechadura
certa. Saímos iluminadas pela simpatia
das gentes que cruzavam e se manteve Braga fora. E logo um repique de sinos que
alguns acham de mau tom por lembrar o ranço das igrejas, maceração de velas que
quebranta, flores a apodrecer ao calor das luzes. Porém, em mim, sinos são
festa. Talvez por me lembrar de tocar o sino a meias com outras crianças e da
paródia que era andarmos a balançar agarrados na corda para cá e para lá, a
zeladora da igreja aos gritos para a torre e nós a badalar mais que o sino,
descemos já. Portanto: eu podia viver em Braga de muita igreja e melodia festiva; com janelas de vidro duplo para não haver interrupções no sono que pouco tenho.
Ok, ok, os frades da Cartuxa precisam deles que rezam de quarto em quarto de
hora. Espero que se revezem e não rezem todos ao mesmo tempo, senão metade já endoideceu. Os frades são poucos, precisam de se preservar. Além de que um
maluco, mesmo silencioso - e ninguém sabe se um maluco consegue manter-se em voto
de silêncio -, deve dar muito trabalho e
não convém à diária de um convento. E veio tudo isto a propósito dos sinos. Bracarenses
e de muito efeito.
Enquanto
subíamos puxando as malas como se fossem o carneirinho dócil que o S. João
festeiro carrega nos ombros, os meus olhos cirandavam por ali, a elucidar
razões. Dei conta de pastelarias a que prometi voltar, de ruas amplas e
sem trânsito todas engalanadas para os santos populares, de gente bem disposta
a gozar um feriado siamês do fim de semana, da temperatura amena e brisada, de
largos e praças arrumados para a festa. Não podia ser melhor.
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