segunda-feira, 13 de junho de 2016

Uma Viagem a Bracara Augusta

Os comboios são fetiche de deserção. Duas rectas paralelas. Assim me pareciam os carris deitados de atravesso sobre as traves de madeira que rescendiam. Mais tarde, descobri serem infindáveis segmentos de recta. E por esta nomenclatura me fiquei. Atordoada. Sem saber se os segmentos se diziam assim por serem pequenas partes da infinita recta, ou se bastava haver neles princípio e fim. A meus olhos de incógnita herdeira de Tomé o apóstolo, linhas a que não via princípio ou fim não podiam ser segmentos. No entanto, por vezes, denoto já um pendor para descrer nos sentidos, uma insinuação de dúvida (suponho que seja velhice, que a filosofia nada conseguiu). Descrer dos sentidos é a autodefesa dos velhos. Olhamos o espelho e, “a juventude de espírito é que interessa”; lemos mal o título do filme e, “ não tem importância. Importa é a inteligência da coisa e a história não nos escapa”.  Ou seja, já não apanhamos as legendas do mundo, mas fingimos que, para o compreender, basta ver os bonecos. Até hoje ainda não entrevi a grande sabedoria dos velhos. Ou então confundi-a com rabugice. Tenho que investigar, não é assunto encerrado (ai de mim se for só rabugem).
Ora mas eu quero mesmo é contar o passeio que fiz a Braga e começou numa linha de comboio inodora, sem traves de madeira, mas ainda com carris (vá lá, que com carris). No Alfa Pendular que não pendula, antes segue direitinho ao seu destino, menino obediente a dar conta do recado. Mas cumpre o horário e portanto o pendular está-lhe nas medidas. Pronto, é verdade que mal me sento no comboio e ele começa a deslocar-se, me vem aquela certeza parva de que vou no sentido inverso ao pretendido e me enganei na gare; acresce que não é provocado pelo fenómeno de ver a paisagem andar, é mesmo o meu mapa mental que está sempre do avesso. Mas o hábito já me desvaneceu o medo. Fica-me apenas a estranheza de ir na linha do norte a pensar que vou para sul, a desconfiar que quando espero Coimbra me sai Beja ou Cuba e que afinal desemboco em Faro e vou a banhos sem ter onde aportar. Mas não. Mais clever que eu, o maquinista passou Coimbra, Porto-Campanhã e ganhou Braga. Olhei e o comboio todo se aperaltava para a estação, num conciliábulo de olhinhos que não desgrudam, passo terno junto à gare. Ou a certeza de chave em fechadura certa.  Saímos iluminadas pela simpatia das gentes que cruzavam e se manteve Braga fora. E logo um repique de sinos que alguns acham de mau tom por lembrar o ranço das igrejas, maceração de velas que quebranta, flores a apodrecer ao calor das luzes. Porém, em mim, sinos são festa. Talvez por me lembrar de tocar o sino a meias com outras crianças e da paródia que era andarmos a balançar agarrados na corda para cá e para lá, a zeladora da igreja aos gritos para a torre e nós a badalar mais que o sino, descemos já. Portanto: eu podia viver em Braga de muita igreja e melodia festiva; com janelas de vidro duplo para não haver interrupções no sono que pouco tenho. Ok, ok, os frades da Cartuxa precisam deles que rezam de quarto em quarto de hora. Espero que se revezem e não rezem todos ao mesmo tempo, senão metade já endoideceu. Os frades são poucos, precisam de se preservar. Além de que um maluco, mesmo silencioso - e ninguém sabe se um maluco consegue manter-se em voto de silêncio -,  deve dar muito trabalho e não convém à diária de um convento. E veio tudo isto a propósito dos sinos. Bracarenses e de muito efeito.

Enquanto subíamos puxando as malas como se fossem o carneirinho dócil que o S. João festeiro carrega nos ombros, os meus olhos cirandavam por ali, a elucidar razões. Dei conta de pastelarias a que prometi voltar, de ruas amplas e sem trânsito todas engalanadas para os santos populares, de gente bem disposta a gozar um feriado siamês do fim de semana, da temperatura amena e brisada, de largos e praças arrumados para a festa. Não podia ser melhor. 

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