quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Menino Jesus fora do Presépio

Anualmente, escrevo um post que no meu íntimo, bem o sei,  é a minha árvore de Natal. À medida que enfeito e preparo o Natal de verdade para muita gente, dou-me conta que, cada vez mais, vou recuando no tempo. Chegou-me a velhice. Não que me demore em avaliações, a sopesar bens de outros tempos. Apenas aquele tempo se me impõe. Nostálgico, sim. E não foi um bom tempo. Mas, dele, todos recolhemos coisas boas que nos alisam o carácter e dão algumas ferramentas de viver. Hoje, precisamente há uns minutos, pensando nos presentes que preparo e no crédito de horas que me falta (e não me parece que baste que a minha vida não é só prendas, também tem outras coisas mais aborrecidas), ocorreu-me a imagem de minha mãe como ela mesma ma descreveu e permanece até que a memória deslace: teria eu uns esgalgueirados treze anos, corria a segunda metade dos anos sessenta, em dia tão frio e triste como este, deslocou-se à vila - de certeza por necessidade premente que a carreira era paga e meu pai um sovina -  e visitou o cemitério, então cena isolada a uma ponta da urbe.  No regresso fazia caminho contra o vento, o frio a querer despir-lhe o casaquinho leve. Seguia cabisbaixa e enregelada, em labuta com o vendaval, a remoer a tristura de não poder comprar-nos as sombrinhas de chocolate que nos encantavam. Porém,  antes das bombas da gasolina que inda existem, veio-lhe de encontro aos pés uma nota de quinhentos escudos. Ela parou, olhos arregalados, o coração num baque. Nesse ano, minha mãe não tinha que dar-nos, meu pai, um ali babá que não abria mão da gruta, surdo de todo ao seu pedido de menino jesus para nós. A minha incrédula mãe  e  a nota. Uma nota empurrada pela ventania e parada no bico do sapato, a contorná-lo, as pontas agitando-se como asas. Não se baixou a apanhá-la, antes olhou receosa para todos os lados. Mas, no meio do frio, ninguém. O largo das bombas, deserto. Uma oficina próxima laborando, barulho de maçaricos, o cheiro do metal em fusão, faúlhas azuis a chispar em estrela, fatos-macaco debruçados, atentos. Minha mãe indecisa, não é meu. A pensar, Deus queira que não seja dinheiro de pobre, que seja de um rico que encheu o depósito de gasolina e ao pagar deixou cair esta nota que veio vindo com o vento e ele nem dá pela falta; a convencer-se, foi ajuda do céu, as minhas filhas podem ter Natal. Baixou-se e, numa alegria decidida, apanhou a nota e colocou-a dentro do saco de quadradinhos verdes e pretos que era saco de ir à vila. Minha mãe sem dinheiro e que nunca teve carteira a estugar o passo, ainda tenho de ir às lojas antes da hora da carreira. A destinar: cem para aqui, cem para ali, no gozo celeste e maternal de nos comprazer.  
Não houve Natal assim. A cada uma couberam três ou quatro embrulhos além das sombrinhas que desta vez vinham com gatinhos também de chocolate, os mesmos que invejávamos de nariz colado à montra da pastelaria. Manhã de alegria retumbante e ruidosa, gargalhadas, exclamações de surpresa em surpresa. Mas o que pensei mesmo à bocadinho não foi isto que até já contei noutros lados, quem sabe até melhor. Foi assim: com aquele dinheiro, minha mãe não comprou um alfinete para ela. Nada. Gastou tudo connosco. Contudo, nunca teve uma prenda de Natal. De ninguém. Mas plantou em nós a ilusão e alimentava-a contínua, sempre tivemos   alguma prendinha no sapato.
Eu sei, a vida não é justa. Mas, tanta vez, é injusta demais.

Pronto. Eis a  árvore. Tem luzes, brilhos, estrela e tudo.

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