Anualmente,
escrevo um post que no meu íntimo, bem o sei, é a minha árvore de Natal. À medida que
enfeito e preparo o Natal de verdade para muita gente, dou-me conta que, cada
vez mais, vou recuando no tempo. Chegou-me a velhice. Não que me demore em
avaliações, a sopesar bens de outros tempos. Apenas aquele tempo se me impõe.
Nostálgico, sim. E não foi um bom tempo. Mas, dele, todos recolhemos coisas boas
que nos alisam o carácter e dão algumas ferramentas de viver. Hoje,
precisamente há uns minutos, pensando nos presentes que preparo e no crédito de
horas que me falta (e não me parece que baste que a minha vida não é só prendas,
também tem outras coisas mais aborrecidas), ocorreu-me a imagem de minha mãe
como ela mesma ma descreveu e permanece até que a memória deslace: teria eu uns
esgalgueirados treze anos, corria a segunda metade dos anos sessenta, em dia
tão frio e triste como este, deslocou-se à vila - de certeza por necessidade
premente que a carreira era paga e meu pai um sovina - e visitou o cemitério, então cena isolada a
uma ponta da urbe. No regresso fazia
caminho contra o vento, o frio a querer despir-lhe o casaquinho leve. Seguia
cabisbaixa e enregelada, em labuta com o vendaval, a remoer a tristura de não
poder comprar-nos as sombrinhas de chocolate que nos encantavam. Porém, antes das bombas da gasolina que inda existem,
veio-lhe de encontro aos pés uma nota de quinhentos escudos. Ela parou, olhos
arregalados, o coração num baque. Nesse ano, minha mãe não tinha que dar-nos,
meu pai, um ali babá que não abria mão da gruta, surdo de todo ao seu pedido de
menino jesus para nós. A minha incrédula mãe e a
nota. Uma nota empurrada pela ventania e parada no bico do sapato, a
contorná-lo, as pontas agitando-se como asas. Não se baixou a apanhá-la, antes olhou
receosa para todos os lados. Mas, no meio do frio, ninguém. O largo das bombas,
deserto. Uma oficina próxima laborando, barulho de maçaricos, o cheiro do metal
em fusão, faúlhas azuis a chispar em estrela, fatos-macaco debruçados, atentos.
Minha mãe indecisa, não é meu. A pensar, Deus queira que não seja dinheiro de
pobre, que seja de um rico que encheu o depósito de gasolina e ao pagar deixou
cair esta nota que veio vindo com o vento e ele nem dá pela falta; a convencer-se,
foi ajuda do céu, as minhas filhas podem ter Natal. Baixou-se e, numa alegria
decidida, apanhou a nota e colocou-a dentro do saco de quadradinhos verdes e pretos
que era saco de ir à vila. Minha mãe sem dinheiro e que nunca teve carteira a
estugar o passo, ainda tenho de ir às lojas antes da hora da carreira. A
destinar: cem para aqui, cem para ali, no gozo celeste e maternal de nos
comprazer.
Não
houve Natal assim. A cada uma couberam três ou quatro embrulhos além das
sombrinhas que desta vez vinham com gatinhos também de chocolate, os mesmos que
invejávamos de nariz colado à montra da pastelaria. Manhã de alegria retumbante
e ruidosa, gargalhadas, exclamações de surpresa em surpresa. Mas o que pensei
mesmo à bocadinho não foi isto que até já contei noutros lados, quem sabe até melhor. Foi assim: com aquele dinheiro, minha mãe não
comprou um alfinete para ela. Nada. Gastou tudo connosco. Contudo, nunca teve
uma prenda de Natal. De ninguém. Mas plantou em nós a ilusão e alimentava-a
contínua, sempre tivemos alguma prendinha no sapato.
Eu
sei, a vida não é justa. Mas, tanta vez, é injusta demais.
Pronto.
Eis a árvore. Tem luzes, brilhos,
estrela e tudo.
Sem comentários:
Enviar um comentário