domingo, 4 de dezembro de 2016

No Tempo da Escola

Pouco me durou a quietude amuada. Morta de curiosidade, pendurei-me no janelico sob o toldo e, na divisão escura vi minha mãe de costas e, de frente para mim,  uma mulher gorda, carrapito mal feito, a limpar o balcão corrido com um trapo. A mulher mexia os lábios sem expressão e o ruído do vento abafava a conversa. Quando minha mãe se voltou regressei aos sacos numa pressa, os olhos da mulher fixos na janela sem um sobressalto, peixes mortos num aquário. Minha mãe pegou nos sacos e levantou-me a rede, entra, vamos ficar aqui um bocado, as visitas são só à tarde e estamos perto. Satisfeita, transpus o umbral e chegou-me o cheiro tão conhecido de taberna de pobre. Não de café com cheiro a galões e garotos, onde senhoras perfumadas e com laca levam os meninos a comer um bolo de arroz ou uma sandes de fiambre fresquinho em pão tão branco de fazer inveja à gente que entra a pedir um copo de água para um filho. Gente tanta vez mal recebida por quem serve como ela e cumpre ordem restrita, é enxotá-las, isto é café de gente fina, temos o doutor  e senhora,  a D. Claudette, os coronéis na reforma. E em violento repúdio, essas pobretanas não deixam tusto e só me afastam a clientela, se as vejo por aqui, você é que paga.  E a obediência dos casacos brancos, lacinho preto na camisa, a emproar em sisudez peremptória, se quiser uma água senta-se à mesa e paga. E elas desandam humildes, a agradecer como quem se desculpa por entrar onde não deve, obrigada.  As crianças vão atrás, sedentas e a fazer beicinho, em fome arreganhada e olhos em alvo para os galões de bom cheiro e as sandes de fiambre fresco. Aspirando o ar quente e confortável do café onde nunca se sentarão. Ao invés, na taberna impunha-se um cediço compacto, feito de dias atrás de dias,  mistura de expirações avinhadas com o fedor entranhado a suor e sujidade, consubstanciados nos dois bancos corridos de madeira, encostados nas laterais do balcão. Atrás do balcão de parede a parede e rematado num dos lados  por levadiça de madeira, nos dois alguidares de lavar os copos, um líquido escuro e indistinguível do próprio vinho, decretava uso e abuso sem renovação. Ou, para os mais ligados a milagres, eram testemunhos da mudança da água em vinho. Acima deles, a prateleira de garrafas escalavradas em pose de dentadura com falhas e sem higiene. Coisa não apreciável. A um canto, uma abertura tapada com uma saca aberta de meio a meio, decerto a ligar a taberna à zona de habitação. Mas o interior da taberna estava quente e sem vento. E  após adaptação de olhos e pituitária, minha mãe limpou um bocado do banco com o papel pardo que resguardava a comida dentro dos sacos e sentámo-nos. Sem freguesia, a taberneira içou a ponte e veio sentar-se silente na outra ponta do banco, a amassar no colo o trapo tão da cor do vinho que quase se podia torcer, e minha mãe entendeu-lhe a mensagem. Puxou das nossas sandes de pão com ovo mexido, retirou quase metade a cada uma e estendeu o braço. Ela largou o trapo no regaço, assim como assim era mais nódoa menos nódoa, avançou uma mão em garra e mastigou com tanta avidez como eu nunca tinha visto. É que nem o Luís quando era apanhado pela mãe a comer-lhe nabos e cenouras, conseguia ser tão veloz. Pensei que tal voracidade ia acabar às dentadas ao nosso pão já tão curto e desatei também a mastigar. Não se ouviu palavra durante o acto. Eu comia e olhava disfarçadamente o  vulto das duas mulheres e o seu ser diverso, as mãos, a forma como pegavam no pão e mastigavam, o perfil de cada uma e o que sugeria. Depois de comermos, e enquanto minha mãe puxava da eterna garrafinha, a taberneira foi ao balcão, tirou um copo, abriu o pipo, encheu-o e bebeu de seguida. Fez um sinal a minha mãe com o copo vazio, mas ela negou. Então deu-nos as costas, puxou a saca e desapareceu no que me pareceu uma desarrumação geral. Voltou com três maçãs riscadas. Tão bonitas e apetitosas que me pareciam impossíveis naquela miséria de mãos enegrecidas e bandalhice. Foi então que falou, estendendo o braço para mim, escolhes tu primeiro, são da minha macieira. E perante o meu ar indeciso, não tenhas nojo, lavei-as com água do poço. Estavam guardadas para uma visita, mas ninguém me chegou e hoje é dia de Natal. E pusemo-nos as três a roer as maçãs até ao caroço.  Depois, e para fazer tempo na taberna solitária, entretive-me com o chinquilho encostado atrás da porta, enquanto as duas conversavam baixinho.

Quando se fez tempo, despedimo-nos até uma próxima e a última coisa que vi da mulher foi a pressa com que retornava ao balcão, descia a ponte de madeira e enchia mais um copo. Quando larguei a rede de pesca e lhe fiz um último adeus com a mão nem respondeu. Pensei que as taberneiras eram esquisitas. Mas ia rever meu pai, estava já perto do sonoro mar, ia conhecer uma prisão... e minha mãe remoçava apesar do frio. Mirei-a de novo, cabeça ligeiramente inclinada para trás, tinha o copo à boca e um fio roxo alongava-se pescoço abaixo. Aquela visão  lembrou-me a condenação das galinhas presas pelas asas debaixo dos pés de minha avó,   penas do pescoço arregaçadas, campo aberto à lâmina. E antes que uma hipotética faca viesse cortar-lhe a goela, virei costas à mulher e corri atrás de minha mãe. Caminhei a seu lado com todos os sentidos despertos, a imaginar um grito descomunal que nos apanhava mais ou menos a meio da rua, nós a estacarmos de susto e só eu conhecendo a causa, sabendo da faca a cortar pele e veias, e do sangue em esguicho sem uma tigela com vinagre a apará-lo.
 . Mas nada aconteceu. Depois de meia rua aquietou-se-me o coração e os meus passos normalizaram. Então, escondi o pesadelo da taberneira, fechei-o dentro de mim e retomei o acervo de perguntas e comentários enquanto, em fundo, o mar surdia. Minha mãe, escuta, é o mar.   E apressámos o passo.

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